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Escolheremos ser ratos que voam ou beija-flores?

INTRODUÇÃO

Escrito por Marcella Arnulf

Em 2023, participei de uma série de oitivas do setor audiovisual junto ao MINC, para diálogos sobre como os recursos da Lei Paulo Gustavo seriam destinados. Para esclarecer, a Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022) destinou mais de R$ 3,8 bilhões para investimentos culturais em estados e municípios. As oitivas são realizadas para escutar, especialmente, o setor cultural, a fim de tomar decisões estratégicas.

Essas oitivas foram muito significativas para despertar o interesse da investigação central que tange o “Cinema das Margens”. Lá pude ouvir mais profundamente sobre opiniões opostas dos participantes presentes. De um lado, algumas pessoas questionavam o fato de que grande parte do orçamento era destinado ao audiovisual e tentavam realocar esses recursos para outras áreas artísticas, como dança, teatro e música. De um lado argumentavam que o audiovisual estava se tornando corporativo, do outro lado, indivíduos ligados ao setor do audiovisual defendiam que é importante garantir que a verba chegue às mãos de quem já atuava na área antes da pandemia, pois muitos “novos profissionais” surgiram durante o período de isolamento social. Elas afirmam que estão apenas buscando o reconhecimento legal, que pela primeira vez valoriza essa categoria anteriormente elitizada.

O que gerou esses conflitos acalorados? Frequentemente, tenho dificuldades para me comunicar devido ao meu transtorno de atenção. Isso me levou a um desejo obsessivo de entender os desvios na comunicação. Portanto, busco encontrar o ponto óbvio que foi esquecido e causou desconforto.

Ao responder em privado a uma mensagem coletiva, fui repreendida: “Mas você nem se apresentou”. Era verdade, sem me apresentar, comecei a discutir pontos complexos de forma vaga. Compreendi que a conversa não seria produtiva sem uma apresentação adequada. Então, respondi: “Verdade, desculpe, como você pode me entender se nem nos conhecemos, faltou me apresentar”.

Imagine um cozinheiro que nunca dançou decidindo protagonizar um espetáculo de dança apenas porque tem uma verba destinada à dança e não para a culinária, e achando ruim que uma bailarina profissional questione ou defenda sua posição como profissional. As outras artes podem achar que todos podem fazer uma obra audiovisual, afinal, uma ideia na cabeça e uma câmera na mão. No entanto, a questão em discussão não é técnica, nem se trata de quem tem ou não habilidade para produzir um filme. Acredito que essa confusão ocorre porque, assim como o colega do grupo do WhatsApp não me conhecia, nossas outras irmãs de arte ainda não compreendem o que muitos de nós experienciamos no setor marginalizado do audiovisual.

Sendo assim, fiquei pensando em como nos apresentar e em como poderia contribuir com esse debate, e me dei a licença de uma tentativa de esclarecimento geral, assim vou me apresentar, com os devidos privilégios e limitações de quem vos escreve, como o AUDIOVISUAL DE GUERRILHA.

Nós, artes irmãs, fomos criados distantes. Eu sou visto como o primo rico, que sempre morou fora do país. Quando nossa avó foi tragicamente assassinada por quem deveria cuidar dela, retornei, carregado de termos e exigências, buscando meu lugar no testamento.

Possivelmente, não sou como você supõe. A imagem que você pode ter de mim é aquela que se vê no Instagram, distante e misteriosa. No entanto, é importante que você saiba que existem outras facetas e realidades além do intercâmbio internacional. Há a prima tímida do interior, o primo pobre da periferia, aqueles que não possuem equipamento e filmam com celular, a classe média que estudou em boas faculdades, mas não teve oportunidades e acabou fazendo seu próprio filme vendendo brigadeiros ou vendendo um carro velho. E há muitas outras histórias como essas.

Agora, permita-me explicar por que nunca aparecemos nas festas de Natal em família. O audiovisual familiar a você e ao público em geral aspira a se tornar uma indústria e, por isso, tende a ser esnobe e distante. Porém, ele ainda não é indústria, com alguns próximos a alcançá-los, e outros que estão se esforçando feito masoquistas para chegar lá, por isso eles podem vir de mansinho pedindo empréstimo para vovó. Esse audiovisual é mais luxuoso, mais caro, tem o lucro como premissa, exige críticas positivas nos jornais, glamour nos tapetes vermelhos, egos inflados vestindo grifes e grandes estrelas. Sim, eles são vistos e lembrados.

Por outro lado, nossos filmes de guerrilha sempre foram produzidos com rifas, parcerias imploradas e sem orçamento. Contamos inúmeras vezes com vocês, as artes irmãs mais velhas, na luta. A colaboração dos atores de teatro, as trilhas sonoras dos amigos músicos e o esforço do cenógrafo e figurinista são essenciais. Vocês, que se arriscam em novos formatos, são quem nos ajudam, e não nosso irmão da capital. Mas infelizmente, mesmo após produzidos, nossos filmes muitas vezes não têm espaço para serem exibidos, ou seja, eles nunca são vistos. É por isso que nunca aparecemos nas festas, muitas vezes não nos sentimos dignos da família.

Não somos inimigos, apenas queremos ser reconhecidos.

Durante muitos anos, só havia um edital para curtas-metragens para o município de São Paulo e nenhum a nível Estadual ou federal. Embora na última década o mercado tenha tido o apoio da esfera federal, esse suporte estava progressivamente enfraquecido. Ainda que os salários do setor audiovisual sejam justos e respeitados, graças às conquistas trabalhistas, incluindo a publicidade, o alto custo padrão, aliado aos preços elevados dos equipamentos de gravação, impediu por muitos anos a criação de obras fora do eixo Rio/SP.

O modelo do mercado audiovisual é elaborado para um set de filmagem profissional que tem um turno de 12 horas, as gravações de longas e séries duram de 40 dias a 3 meses e até recentemente apenas com 1 dia de descanso por semana. Isso implica que aqueles que lutam para entrar neste meio não podem ser cineastas e professores, técnicos de áudio e corretores, diretores e dentistas, produtoras e mães. Portanto, torna-se s um meio altamente elitizado, afinal, o que você faz entre as produções? Não é possível acumular projetos ou trabalhos, e até por isso um orçamento de um milhão de reais é considerado baixo para fazer um filme, afinal você precisa manter a estrutura de uma grande equipe por muito tempo corrido. Contudo, esse modelo de produção é aplicado aos irmãos, o chamado cinema de “mercado”, praticado na capital de São Paulo, que até o momento parece ser o único apreciado e reconhecido, já que é um setor de grande impacto econômico na esfera cultural.

Já o audiovisual de guerrilha é esquecido e inferiorizado, muitas vezes as produções precisam ser pensadas em diárias picadas para economizar no almoço da equipe e conciliar agendas. Fazemos vaquinhas o tempo todo para arcar com os custos de produção, inscrições em festivais (que são caríssimos) e para assistir nossos próprios filmes na tela. Ok, mas assim como nossas artes irmãs, apesar das dificuldades, resistimos e produzimos com o que temos. Muitas vezes, surgem obras apenas feitas com o celular. No entanto, é provável que essas obras só possam ser vistas no YouTube, porque elas não cabem nos critérios para as telas de festivais, porque praticamente não existem mais cinemas de rua, porque o cinema pobre e marginal quando aprovado para um grande festival, precisa carregar aquela imagem de um grande achado, um diamante bruto em meio a uma pedreira repleta de pedras sem valor.

O cinema periférico e do interior é outro. A realidade é que temos, precisamos acumular trabalhos, ter outras profissões, sempre tivemos que ter o famoso plano “B”, nunca conseguimos de fato ser profissionais que sobrevive minimamente da própria arte. O ProAC de São Paulo 2023 lançou seus editais e, tirando o de curtas, todos são de complementação. O cinema do interior luta há anos para que não se retirem as cotas do interior, uma luta contra o cinema hegemônico que quer comer todas as bordas e recheios. Falharam até agora, mas espertos e rasteiros que são, encontraram uma brecha. Em 2023, só tivemos editais de complementação, mas reflita quem tem verba reservada e garantida pela federal, coprodução ou patrocínios diretos para ter o que complementar?

Em 2024, as cotas para o audiovisual interiorano serão extintas. A chamada de produção estabelece cotas para empresas que façam parceria com produtoras do interior. Isso sugere que empresas fora da capital só vencerão se associadas a uma produtora maior da capital.

Será que devemos mesmo continuar considerando que com R$500.000 não é possível fazer um filme? Poderíamos produzir um filme integralmente com esse valor, considerando um novo modelo de produção fora das capitais? Me parece incongruente querer replicar um modelo que nunca nos incluiu. Precisamos repensar nossas formas de produção e explorar novas possibilidades.

Outros formatos de formas de produção podem e devem surgir, é possível pensar em criar um filme gradualmente, dentro de um grupo de pesquisa independente por exemplo. Volto minhas súplicas às artes irmãs, apesar do financiamento da cultura estar abaixo do ideal. Nós, do audiovisual marginalizado e sobrevivente, sempre vimos o audiovisual como nossa principal linguagem artística. Por anos, fomos escondidos, mas agora enxergamos a chance de romper o paradigma elitizado. Entenda, a luta não é contra vocês, nem contra quem deseja iniciar na produção de filmes. Nunca foi ou será sobre vocês, artes irmãs. Sobretudo, queremos poder contar com nossos colegas artistas de outros segmentos, que há mais tempo lutam contra questões similares e sabem muito bem contra quem precisamos lutar.

Para concluir, gostaria de destacar um desafio significativo para nós: o audiovisual marginalizado e insurgente. Estamos, ou estávamos até pouco tempo, sozinhos, porque o mercado nunca permitiu o desenvolvimento do coletivo. Você conhece algum coletivo criativo que realiza projetos contínuos na área de audiovisual? Companhias de cinema? O modelo hegemônico funcionou “tão bem” que não coube nem o vislumbre do sonhar juntos novos modelos, não cabia nada além do óbvio estabelecido, isso até hoje! Até que a esperança surgiu em meio a uma tragédia que foi a pandemia, o audiovisual foi visto com outros olhos, e a Lei Paulo Gustavo apareceu como uma chance excepcional, que gerou uma crença otimista entre nós, incitou o encontro, nos fez defender nossa arte de forma quase que irracional, a ponto de brigarmos entre nós, da mesma família. Tudo isso sem dúvida não é corporativismo, é porque pela primeira vez sentimos que poderemos ser vistos.

Solicitamos apoio e valorização de envolvidos historicamente neste segmento, especialmente artistas e técnicos do interior e periferias. Esclarecemos que a luta não é pelo orçamento, que logo se esgota, mas pela defesa legítima de uma semente. Esta pode impulsionar uma união inédita no setor e incentivar diálogos para a criação de novos modelos de produção, possibilitando o surgimento de novas formas de existência profissional.

Sendo assim, é exposto tudo isso, retorno a pergunta inicial para quem chegou até aqui. O que faz com que segmentos e pessoas que têm tanto em comum e poderiam ser parceiras, amigas, amores, testemunhas de luta, se enxerguem como concorrentes?

Será só dinheiro? Ou a falta dele?. NÃO, se for isso, acreditamos que falhamos, e falhamos forte. Porque o que temos hoje são migalhas jogadas aos pombos, para nós, ratos que voam. Aceitaremos então que somos aves de cidade, a escória do mundo, ratos com asas? Tudo bem, pode até ser, pelo menos possuímos asas que pairam baixo, mas pairam, permitindo-nos imaginar, criar, alçar voo e sonhar com a transformação.

Contudo, francamente, não creio que sejamos meros pombos que voam raso, e do mesmo modo que você me percebia (espero que não mais) como um primo rico distante, podemos concordar que não desejamos ser criaturas sujas, parasitas, que não estamos batalhando por pedaços de pão envelhecido jogado ao chão, e auxiliar uns aos outros a recordar que somos tucanos, araras, beija-flores, bem-te-vi, pica-pau e que somos originados de uma floresta vasta, extensa, diversificada, que não importa quem nos destrua, sempre renascemos.

Seguimos sempre.

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