Kayana Miura, uma das vozes ativas do Polo Audiovisual do Velho Oeste, reflete sobre a importância da formação prática no interior, com o polo atuando como um ponto de encontro para aqueles que querem aprender e produzir, além de ser uma possibilidade de enfrentamento aos recursos limitados e falta de escolas de cinema. “O cinema é uma ferramenta de emancipação, algo que permite criar novos repertórios e imaginar outras realidades,” afirma Kayana. Essa abordagem empírica permite que novos cineastas se desenvolvam de maneira orgânica, adaptando-se aos recursos locais. É o cinema como ferramenta transformadora e de emancipação.
E aqui entra o diferencial: o aprendizado é prático e no campo, porque no interior não há grandes escolas de cinema. Marcella compartilha que o interior tem essa mistura entre formação e produção, com os movimentos surgindo muitas vezes a partir de cursos livres e oficinas organizadas pelos próprios coletivos, como uma forma de compensar a falta de investimentos. É um processo, segundo ela, que faz a produção local crescer de forma contínua, mesmo que seja com poucos recursos.

Aprender na Prática e no Coletivo
A força do cinema no interior está em sua capacidade de formar talentos, construir redes e ressignificar territórios. Mais do que criar filmes, esses movimentos promovem uma transformação cultural e social, ampliando a representatividade e redefinindo o papel do audiovisual como ferramenta de inclusão e expressão. O cinema interiorano não é apenas uma alternativa ao modelo hegemônico, mas uma afirmação de que histórias locais também merecem um lugar de destaque. Kayana Miura, outra colaboradora do Polo Velho Oeste, endossa a opinião e aponta que a prática é o que mantém esse movimento vivo, seja em oficinas presenciais ou em trocas de experiência entre os grupos. Para ela, o aprendizado no interior ocorre de maneira prática e empírica, o que acaba trazendo uma visão mais realista sobre o processo de produção audiovisual. Em uma conversa com a produtora, Miura destaca, entre outras questões, a importância da formação no contexto de baixo orçamento. “O cinema é uma ferramenta de emancipação, algo que permite criar novos repertórios e imaginar outras realidades”, afirma Kayana, reforçando a importância de se adaptar aos recursos locais. Parte do bate-papo elucidativo está disponível a seguir.
Entrevista: Kayana Miura
Em uma troca de ideias, Kayana Miura propõe uma profunda discussão sobre o cinema produzido no interior, destacando as nuances e tensões entre o modelo comercial e as práticas audiovisuais que emergem de territórios periféricos. Cineasta e integrante do Polo Audiovisual do Velho Oeste, Kayana compartilha sua trajetória e os desafios enfrentados ao propor um cinema que busca romper com estereótipos e explorar novas possibilidades narrativas. Seu olhar crítico e engajado aborda o papel do audiovisual como ferramenta de emancipação e construção de imaginários, valorizando histórias locais e ressignificando o papel do cinema como expressão política e cultural.
KAYANA MIURA: Eu penso que existe cinema no interior, mas de que tipo de cinema a gente está falando, né? Acho que é pensar quais os caminhos que tem esse cinema do interior, porque se a gente for pensar no cinema de modo comercial, existe também, mas será que esse é o cinema do interior? Será que diz respeito a uma comunidade, a um grupo que tem se deslocado de lugares de origem para construir esse cinema? Eu penso o cinema enquanto uma ferramenta, aí acho necessário pensar quais cinemas são esses que a gente tem se proposto a fazer; se, de fato, ele é uma ferramenta de emancipação, de construção de novos repertórios, de criação de imaginários. Mas sim, existe cinema no interior.
MARCELLA ARNULF: Será que você poderia se apresentar, falar seu nome completo, um pouquinho sobre quem é você como cineasta, como artista… e também sobre você como parte desse território aqui.
KAYANA MIURA: Me chamo Kayana Harumi Miura, tenho 27 anos. Minha família, parte dela – minha avó materna, minha mãe – está por aqui, em Assis, então eu cresci um pedaço da minha infância aqui, nesse espaço. Fui embora para o Goiás para fazer faculdade, eu falo que eu tenho “deformação” em psicologia. Lá [em Goiás] é onde eu considero que iniciei essa trajetória no audiovisual. Ainda não entendia, não sabia nomear o que era cinema – para mim, cinema era esse lugar muito hollywoodiano, das grandes capitais… E aí foi uma surpresa chegar aqui, em Assis, e ver que existe um cinema de rua, onde a gente utiliza e ocupa esse espaço para passar outras coisas que estão para além do cinema hollywoodiano. Depois de ter terminado a graduação, retornei para Assis e aí encontrei, esse espaço do Polo Audiovisual do Velho Oeste.
MARCELLA ARNULF: Você está há quanto tempo no Polo?
KAYANA MIURA: Desde fim de 2022. E o Polo surgiu em meados de 2018, 2019, mas já passou por outros nomes, por outros modos de se entender. A gente está nesse processo de elaboração desse trabalho que a gente tem feito. Teve um evento, nessa última semana, que foi a SEDA, Semana do Audiovisual, e a gente foi convidado para compartilhar essas experiências que temos tido. A conversa foi entre algumas pessoas do Polo e algumas pessoas do Kino-Olho, um grupo de Rio Claro. São trajetórias que, apesar de diferentes, também são muito parecidas no modo de fazer.
MARCELLA ARNULF: Vocês acham que essa proximidade tem a ver com ideias próximas sobre o que é cinema, sobre o que vocês querem fazer?
KAYANA MIURA: Ah, eu acredito que sim, que tem uma confluência indivíduos que vão se achegando e juntos conseguem potencializar. Algo que, talvez, se fosse feito individualmente, não teria a mesma força. Acho que é esse lugar de conseguir encontrar semelhanças, de ressoar em outros lugares e se fortalecer mesmo, esse movimento carrega vários tempos. Apesar de ser algo antigo, também é algo novo que está se propondo, um processo de formação da possibilidade de ocupar e chegar em diferentes territórios. Nesse momento, dentro do Polo a gente está fazendo uns projetos de formação que se dividem em três núcleos diferentes, um é o núcleo criativo, o outro é o cinema e educação, e a frente de territórios. No território a gente tem passado por diversos lugares, entre assentamentos, quilombos, mocambos, terreiros, aldeias indígenas, e nesses espaços a gente consegue trocar coisas, nesses lugares de oficinas, de formação.
MARCELLA ARNULF: Vocês vão para esses territórios oferecer oficinas?
KAYANA MIURA: Sim, a gente vai propor oficinas e, dependendo do acolhimento que se tem, a gente troca saberes entre o que a gente tem pesquisado, investigado, e o que as pessoas que estão nesse espaço tem.
MARCELLA ARNULF: E saem em produção?
KAYANA MIURA: Sim, são oficinas de realização.
MARCELLA ARNULF: Eu percebo um grande crescimento do audiovisual nos assentamentos do interior. Você tem essa percepção? Porque lá onde eu moro, eu moro lá no Vale do Paraíba, tem alguns assentamentos que estão começando a produção de filmes, também.
KAYANA MIURA: Eu percebo. Eu acho que isso tem a ver também com a própria demanda do mundo, do lugar da comunicação. Assim como tem diversas aldeias indígenas que também têm se formado, pessoas ali que têm se formado no audiovisual, na produção de outras formas de se comunicar, porque eu acho que, diante da violência, do apagamento das identidades, é necessário subverter esse lugar.
MARCELLA ARNULF: Vocês enxergam o cinema e o audiovisual nesses espaços formativos mais como uma perspectiva de expressão e comunicação e uma ferramenta do que propriamente como uma obra que vá, de fato, entrar no mercado ou desenvolver talentos que realmente possam entrar no mercado cinematográfico geral?
KAYANA MIURA: Eu penso. Não posso dizer sobre o Polo como um todo, né. Acho que são perspectivas muito individuais, apesar de, em algum lugar, também serem coletivas. Mas o cinema em que eu acredito não é esse cinema do mercado. Para mim, está muito mais na potência da linguagem, de um tensionamento da linguagem e da possibilidade de contar suas próprias histórias. Dependendo da qualidade técnica, e qualidade muito entre aspas, do que está se propondo, talvez possa adentrar diferentes lugares do mercado e, quem sabe, isso tenha um retorno para esse espaço, para essa comunidade que está se propondo a fazer esse trabalho. Mas, para mim, a potência do cinema, uma potência do cinema interiorano, é esse lugar do tensionamento da linguagem e da provocação da possibilidade de contar as próprias histórias; essas histórias serem contadas não pela visão de um outro de fora, serem contadas pelas próprias pessoas que vivenciam aquele cotidiano da vida.
MARCELLA ARNULF: E essas obras, elas são feitas para serem exibidas nos próprios lugares?
KAYANA MIURA: Sim, nos próprios territórios, mas na nossa frente de circulação, a gente também tem tentado promover esse espaço que consiga divulgar, fazer essa distribuição da melhor forma possível. Como fazer para que esses filmes não fiquem parados? Mas ainda é um caminho que a gente está iniciando. Porque eu percebo também que é uma lógica do capital, esse lugar da produção, da execução. Parece que os filmes ficam muito cerceados nesse lugar do festival, não podem passar em outro lugar porque têm que esperar o dia do festival, se vão ser contemplados ou se não vão. A gente ainda tem uma dificuldade com a distribuição de impacto
MARCELLA ARNULF: O que vocês chamam de distribuição de impacto?
KAYANA MIURA: Eu penso a distribuição de impacto enquanto uma distribuição que chega em diferentes populações, uma distribuição que cause, que provoque diferença no pensamento. Não uma distribuição que fica só discutindo questões de fotografia, mas uma distribuição que acesse e produza a possibilidade de outros imaginários.
MARCELLA ARNULF: Vocês têm alguma proposta de retorno econômico? Vocês trabalham alguma lógica de existir esse retorno?
KAYANA MIURA: Nesse momento, a gente não tem conseguido fazer esse retorno. As oficinas são feitas a partir de alguns editais, da Paulo Gustavo, do Proac, e também de emendas parlamentares para formação.
MARCELLA ARNULF: Ah, mas vocês não têm o eixo de produção em si?
KAYANA MIURA: O eixo de produção eu acho que está nesse lugar do núcleo de apoio aos projetos audiovisuais, que é onde a gente escreve e produz.
MARCELLA ARNULF: E você já participou de produções tradicionais também?
KAYANA MIURA: Sim.
MARCELLA ARNULF: E como é para você, essa diferença?
KAYANA MIURA: É bem desgastante, o trabalho do set convencional, esse lugar das funções muito bem delimitadas, onde a pessoa só faz aquilo que foi designada para fazer, não compartilha mais nenhum outro espaço. Eu fico pensando no tempo das diárias, é um cansaço. Nesse cinema comercial, outra pessoa, uma instituição, está esperando um resultado específico daquilo, então tem uma pressão muito grande. Em algum momento entendemos que esse lugar não fazia muito sentido para aquilo que a gente estava propondo.
MARCELLA ARNULF: E tem uma diferença entre as produções de vocês? O modo de produção de quando vocês estão no Polo e quando vão para as oficinas produzir com pessoas que ainda não têm conhecimento audiovisual? Vocês levam o mesmo modelo ou é um modelo diferente?
KAYANA MIURA: Não sei se a gente segue muito essa lógica do modelo. Eu acho que, dentro do Polo, tem pessoas que produzem de diferentes formas, diversos jeitos, diversas linguagens. Eu penso que, em algum lugar, a gente se assemelha bastante, talvez em algum tipo de estética, e acaba que a gente vai compartilhando esse espaço. Em alguns pontos, são coisas, produções parecidas, mas que se distanciam e se diferenciam de diversas formas. Pensar o espaço das oficinas, essa produção que é feita dentro das oficinas, tem muito mais a cara das pessoas que estão ali, nessas oficinas.
MARCELLA ARNULF: Você sente que é um lugar mais de experimentação, talvez, do que propriamente uma formação do que é audiovisual – no sentido dessa pessoa sair dali e conseguir se adaptar ou entender o modus operandi, de fato, de como funciona o audiovisual em geral. Ou é um espaço mais de experimentação, onde ela mais busca relacionar a sua subjetividade, o seu contexto, o seu território a uma expressão, a gravação daquela criatividade?
KAYANA MIURA: Eu acho que é um pouco de cada, mas a gente chega no território e passa o modelo do audiovisual comercial, talvez até pincele um pouco para a pessoa está ali compreender os desafios que se coloca no trabalho, pensando o audiovisual dessa forma mais generalizada.
MARCELLA ARNULF: Vocês abordam direção de artes, fotografia, todos os departamentos?
KAYANA MIURA: Sim, de formas mais sutis, não é específico, porque nessa especificidade a gente tem o núcleo criativo, que é onde a gente produz os cursos de especialização. Dentro das oficinas a gente passa pelas funções dentro do set tradicional, comercial, mas também tensiona a linguagem de um modo com que as pessoas possam questionar esse modus operandi, esse modo do cinema, do cinemão.
MARCELLA ARNULF: Vocês questionam isso na produção de vocês? Como fazem? O que vocês mudam desse modelo?
KAYANA MIURA: A gente tenta romper com o tempo exacerbado das diárias e uma construção que seja mais coletiva nesses processos, em que a gente consiga compartilhar, juntos, aquilo que a pensamos sobre determinada parte do filme. Se colocar de diferentes formas, para além da função da direção, possibilita esse questionamento de todas as áreas; tem um outro tipo de manejo das coisas. Acho que rompe um tanto nesse lugar do tensionamento, no modo que a gente tem produzido. Acho que também rompe no lugar da estética. O cinema interiorano às vezes está fadado a estereótipo do caipira, por exemplo. Então a gente tenta romper com esses estereótipos que já estão pré-estabelecidos.
MARCELLA ARNULF: Eu sinto, quando você me fala que vocês têm um cinema, que pensam um cinema sério. Sério no sentido de ele sempre estar vinculado a diálogos e disputas político-sociais. Faz sentido isso?
KAYANA MIURA: Faz sentido. Eu acho que tem um lugar que fortalece narrativas políticas. E “políticas” não é no sentido de grupos específicos, no sentido de partido. Não é política desse modo. Mas, sim, tem um caráter político crítico. Carrega essa criticidade. Não significa que a gente está ali o tempo inteiro se posicionando de forma enrijecida. Mas tem esse tensionamento, tem esse posicionamento. Você usou a palavra sério… Eu acho que também é sério, mas é sobre uma brincadeira, também. A brincadeira, para mim, tem um caráter político muito grande – retomar esse lugar das brincadeiras. A brincadeira não é esvaziada de sentido. A brincadeira possibilita outras formas de criar o mundo, de imaginar, de inventar. Um trabalho que eu faço, já bem antigo, se chama “brincando com restos de mundos”. E dentro desse lugar é sério, porque estamos falando sobre coisas que são muito sérias. Mas também é uma brincadeira, para a gente retomar essa ferramenta do brincar mesmo. Senão a gente enrijece no lugar da seriedade, da adultez. O cinema, eu considero que também é um cinema criança. É um cinema que é criança, que é jovem, que é velho – que está retomando narrativas muito antigas, memórias, mas que também está ali, brincando pelo quintal. Produzindo a partir dessa brincadeira, desses restos de mundos. De coisas que ficaram no caminho e que agora é possível de serem retomadas.
MARCELLA ARNULF: Você enxerga que isso desemboca em alguma estética específica? Organicamente se chega a alguma estética? Por exemplo, é mais comum, para vocês, fazerem um drama ou documentário? Há um gênero? Ou não?
KAYANA MIURA: Dentro das oficinas a gente tem produzido bastante ficção. São filmes de ficção que compartilham um tanto do cotidiano da história dessas pessoas, mas que não são necessariamente no formato documental.
MARCELLA ARNULF: E você sente que, nesse processo de educação nas escolas ou até nos assentamentos e nas aldeias, eles têm já estabelecido esse cinema mais comercial? É preciso uma desconstrução dessa lógica? Como é a recepção por essa nova forma de pensar o cinema?
KAYANA MIURA: Depende muito dos lugares. Eu acho que o cinema comercial já adentrou diversos lugares. Porque é o que está na televisão, na Netflix. Então as pessoas estão embebidas desse cinema comercial, e às vezes acham que têm essa referência. Às vezes é um pouco difícil desconstruir esse lugar, essa referência. Mas eu compreendo que nesse processo de formação, quando a gente chega propondo um outro tipo de cinema que rompe um tanto com esse cinema comercial, as pessoas veem a possibilidade de produzir de outras formas. Porque esse cinema comercial não tem muito espaço dentro desses lugares, no sentido da dificuldade da produção, do recurso que é utilizado para fazer essas grandes produções. Pensando na realidade de diferentes grupos, talvez o cinema comercial não seja uma realidade. Mas isso não impede que a pessoa, em algum momento, se interesse pelo audiovisual de forma mais profunda e queira adentrar uma equipe, uma função específica dentro de um set comercial. Eu acho que isso não impede. Vai da autonomia da escolha das pessoas. Um ponto de tensionamento é quando a gente chega mostrando que existe a possibilidade de um outro tipo de cinema, que é possível dizer, contar as próprias histórias, e isso ser considerado cinema também. Porque eu penso que esse cinema comercial também está muito relacionado a contar histórias muito distantes da própria realidade das pessoas. E quando elas conseguem perceber que o cinema também pode contar as próprias histórias daquele grupo, que é invisibilizado por muito tempo, isso produz outro tipo de narrativa, e dá a ideia de que é possível produzir um cinema, outros tipos de cinema.
