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Entrevista com Rogério Borges

INTRODUÇÃO

Em um mergulho nos bastidores do Kino-Olho, um coletivo de cinema que, há quase duas décadas, transforma o cenário audiovisual de Rio Claro, interior de São Paulo, conversamos com Rogério Borges, uma figura importante do grupo, para entender como eles criaram um modelo de produção que combina arte, formação e identidade local. Da construção coletiva de histórias às inovações estéticas e estratégias para descentralizar o cinema brasileiro, a entrevista revela os desafios e conquistas de um grupo que, mais do que fazer filmes, fortalece comunidades e cria conexões autênticas.

Transcrição da Entrevista

ROGÉRIO BORGES: O sistema não poderia depender de uma pessoa. Então eu saí da presidência, o Rafa entrou, tem um sistema que continua. E a hora que ele sair, vai continuar. Porque entendemos que essa é a força do grupo, né? Não pode ser muito personificado. E aí, nesse sistema, entendemos, então, que tinha que ser aberto para as pessoas entrarem. Na época, a gente estava sem sede, a sala do Centro Cultural estava super abandonada, com goteira, fedendo mofo. Só que defendemos uma ideia, vamos voltar para lá e mobilizar as pessoas para entrar lá. A partir do momento que as pessoas frequentarem, a própria opinião pública vai ver como a sala de cinema está. E aí, nós vamos ganhar força política para pressionar. E deu certo, porque daí que conseguimos esse espaço, que também não é o sonho nosso, mas é de graça. A gente não paga internet, água, luz, aluguel. Não paga nada. Só que tem problemas. À noite, tem vigilante. Aí criaram um sistema em que a gente tem que agendar tudo que for vir. Tipo, hoje eu não agendei, mas a entrevista se fosse à noite, pode ser que a gente não conseguisse entrar. Então, é uma autonomia, mas também não é. Nosso sonho é ter uma sede própria, só que num preço viável. Porque se hoje for alugar, vai ter que subir essa mensalidade para pagar aluguel. Muita gente não está nem em Rio Claro, isso seria outro fator. Mas é isso: a pessoa tem interesse e entra. Só que depois que entra, não quer dizer que essa pessoa vai estar em todos os projetos e tal. Tem gente que entra, paga mensalidade, nunca aparece, só que a gente entende que é uma pessoa que ajuda, porque ela está pagando, ela acredita no projeto, mas às vezes não tem tempo, às vezes mora longe.

MARCELLA ARNULF: Vocês discutem aqui sobre essa questão estética?

ROGÉRIO BORGES: Discutimos, mas assim… Internamente, é um campo político também. Eu estou te falando tudo isso que é o que eu penso. Tem ideias em debate. Agora nós temos uma frente que está nessa ideia muito forte do cinema contracolonial. O cinema tem essa origem Europa, ocidental, Estados Unidos. Não é que a gente quer deletar isso ou apagar, mas tem outras formas de pensamento a gente tem que jogar para buscar essa diversidade.

MARCELLA ARNULF: E isso esbarra muito na narrativa ou na estética do filme?

ROGÉRIO BORGES: Eu acho que está em tudo. E até no lugar de fala. São assuntos constrangedores. Por quê? O Kino-Olho vem de João Paulo, que era um cara que estudou aqui, no melhor colégio de Rio Claro. Ele tinha uma família com acesso. A partir do momento que o Kino-Olho vai expandindo para mais pessoas, a nossa própria história e condição vai sendo questionada. E isso é legal, porque a evolução de todo grupo é a própria autocrítica do grupo. Não adianta a gente ficar criticando o Rio Claro, criticando a maçonaria e tal, se a gente não criticar nossos próprios processos internos, como uma pessoa que chega e não sabe escrever um projeto. Isso já é uma desigualdade cultural. Não dá para jogar em condições iguais. Por exemplo, quem quiser fazer filme, escreve projeto. Muitas vezes, nós vamos estar dizendo que quem não teve acesso para uma boa educação está fora. Então, como lidar com isso sem também chegar para as pessoas que tiveram o acesso e tratá-las como culpadas? Não é essa a questão. Mas como nivelar histórias que são desniveladas por si?

MARCELLA ARNULF: Como se articular para que se trabalhe em conjunto, a força de um com a força do outro.

ROGÉRIO BORGES: Exato. Só que isso demanda também muito um trabalho de escuta. Como a gente vai acessar outras formas de saber se a gente não tem a disposição para escutar verdades diferentes da nossa? Esse filme agora que estou gravando, o centro de tudo é um culto evangélico. Então, assim, vai dar o que falar. Tenho certeza. Porque, até onde eu vi, quando coloca os evangélicos no cinema, sempre é numa perspectiva crítica contra alienação, contra exploração, das quais não sou a favor, também. Mas tem algo, por exemplo, em achar que as pessoas evangélicas que dão o dízimo são só alienados que não sabem o que estão fazendo. Vejo, hoje, que é uma visão burguesa. Tem muita coisa que é oferecida lá de afeto, de cuidado, de serviço social, que as pessoas não acessam. Alguns filmes nossos já mostraram dessa forma. A Moça que Dançou com o Diabo é um filme em que o pastor é o antagonista.

MARCELLA ARNULF: Hoje já tem um cuidado diferente. A contradição da religiosidade é muito forte. Em todas as entidades religiosas se trabalha com coisas muito boas e com coisas muito feias. Existe a contradição.

ROGÉRIO BORGES: E a gente vai dando passo nesse sentido. A gente teve um cineclube dois meses atrás, foi dentro de um terreiro. Nesse projeto em que eu estou, a Igreja Assembleia de Deus é o culto dos haitianos. O pastor é haitiano. Eles criaram uma comunidade dentro da comunidade. Quem olhar no olhar raso, vai achar que a Igreja está se aproveitando deles. Mas no olhar deles, eles é que estão se aproveitando da Igreja. Porque eles não têm aquela estrutura e eles estão se articulando e é um trabalho espiritual. Porque você vir do país que está como a Haiti está, mas chega no Brasil, que é um país extremamente racista, é um racismo velado, ao qual eles não estão acostumados lá. Quem estava lá não era um coletivo, não foi o Kino-Olho que fez essa recepção deles, não foi um partido político de esquerda, não foi a militância geral, foi a Igreja. E hoje eles estão fortes e têm a condição de me receber lá para eu poder fazer um projeto. Eu estou pensando muito sobre isso.

MARCELLA ARNULF: São evangélicos?

ROGÉRIO BORGES: Eles já eram, né? Mas o culto deles está muito mais próximo daqueles cultos americanos, afro-estadunidense, do que o culto brasileiro. Então, eles cantam, tocam reggae. Tipo, é mágico, assim, um negócio muito interessante. Eu fui pesquisar e ver quanto ignorante eu era sobre o tema. Primeiro, porque é isso que você falou – a igreja católica não tem o transe, não tem a incorporação. A evangélica já tem isso próximo a um bando candomblé, que veio da África, a religiosidade dessa forma. As igrejas neopentecostais na América começam com os negros escravizados porque eles se sentiam cristãos, mas não podiam entrar na igreja católica. Hoje, a religião mais negra do Brasil é a evangélica, não é nem a de matriz africana. E aí você vê lá no culto, também. É uma igreja de matriz africana. E aí, nessa questão, pensando no próprio cinema brasileiro, também tem esse lugar, né? Por exemplo, se é um filme de umbanda, de candomblé, as pessoas têm uma abertura muito grande. Se é um filme evangélico, meio que já entra esperando que vai criticar. Se não criticar, o que acontece? É o que eu vou descobrir.
MARCELLA ARNULF: Eu quero entrar mais no filme., mas, antes de falar dele, queria te perguntar uma coisa. Você falou que vocês têm uma maneira própria de produzir. Queria entender sobre isso. E sobre o que você falou, de já ter tido produções com empresas. Qual que é o modelo de produção do Kino? Como que vocês produzem?

ROGÉRIO BORGES: Acho que nesse primeiro período, quando o João começa a fazer filme aqui, filme ensaio, cineclube, muita gente vai atrás, interessada. Só que quando chegava lá, ele mesmo falava, porque ele já passava os filmes mais estranhos no primeiro dia, “Ó, quem não gostar já é pra ir embora, porque não vai atender a expectativa mesmo”. Aí passava o David Lynch, passava Kubrick, enfim, coisas que ainda, se for ver, são portas de entrada para “drogas mais pesadas”. Mas não é aquilo que a pessoa espera, né? Você gosta de ver filme bom na televisão. Tinha até uma história que o João contava, que chegou um menino que queria fazer uma coisa tipo Senhor dos Anéis, aí o João foi na linha de em vez, sei lá, da espada, ser uma peixeira, em vez da roupa medieval, uma botina. E começou meio que nesse sentido, de olhar ao redor. Um exercício de olhar ao redor que muitas vezes falta, ainda mais hoje. Até para poder vir a crítica, depois, porque as pessoas, às vezes, estão indignadas por um negócio no Instagram, mas na própria cidade acontece coisa muito pior e elas não ficam sabendo.

MARCELLA ARNULF: E quem faz as escolhas? O diretor?

ROGÉRIO BORGES: Escolha de equipe? Ah, é. Eu já cheguei a escalar o time inteiro.

Hoje, eu escalo as cabeças e sugiro assistências.

MARCELLA ARNULF: Você pega as cabeças e as cabeças decidem.

ROGÉRIO BORGES: As cabeças decidem. Aí, na questão da verba, tudo isso para nós é muito novo. O primeiro filme nosso com verba de edital foi o Ladson [Lugar de Ladson], que entrou pelo Proac. Antes disso, quando tinha Proac a gente nem tentava. Porque eu olhava a lista e só dava São Paulo. A gente falava “não vamos nem perder tempo”. E aí que veio essa sequência, Command e Moça que Dançou com o Diabo.Teve também o Quem Chegar Por Último, que foi o meu primeiro curta. E o Meninas Formicida, para o qual a gente conseguiu uma coprodução porque o Command e a Moça fizeram muito sucesso na Europa. Uma empresa veio produzir aqui. Só que assim, era um edital. Tinha uma boa grana, mas o que chegou no Brasil, aqui na ponta, foi bem pouco.

MARCELLA ARNULF: E eles chegaram em qual atribuição? Produção?

ROGÉRIO BORGES: Executiva e direção de produção. Só que muito uma prepotência, também. Porque eles só vieram para cá porque, um ano antes, a gente tinha disputado a Palma de Ouro e ganhado a benção honrosa lá, e, no outro ano, na Semana da Crítica. Achei muito ousado eles chegarem aqui achando que a gente não sabia nada, endo que eles só vieram porque eles tinham visto o nosso filme. E aí foi isso. Nos primeiros dias, só tensão. Você vê pessoas com as quais você tem uma relação afetiva e trabalha junto há vários anos tomando uns esporros do seu lado. Isso acaba com todo mundo do set. Não só com a pessoa que tomou. Eram coisas que na nossa produção não tinha. Depois dessa experiência, a gente acordou, a gente tem que se adaptar. Vai ter momento que eu vou ter que lidar com pessoas do cinema.

MARCELLA ARNULF: O que foi que aconteceu que vocês falaram, “nossa, aqui a gente pode melhorar”. Teve alguma coisa?

ROGÉRIO BORGES: Ah, por exemplo, eu era assistente de direção, mas eu era mais um diretor assistente e eu fazia essa comunicação com a periferia. Todas essas pessoas que estão nos filmes, fui eu quem trouxe, porque eu conhecia muita gente, porque eu era professor. Mas eu assinava como primeiro assistente de direção e era quem cuidava do horário e da direção de produção. Era assim que a gente operava. Quando chegaram, já vieram me pedindo coisas que, no esquema nosso, não era o que eu fazia. Filmamos uma cena do Meninas Formicida, não sei se você já viu, no Boteco. Aí a produtora foi, fui eu com ela. Ela quis saber como ia ser a cena, quem seriam os figurantes e tal, queria a lista. Eu falei que era a galera do bar, aí ela ficou em choque. Ela falou que eu estava maluco, começou a falar um monte. Eu expliquei que era a galera que frequenta, que não adiantava eu catar uma companhia de teatro e colocar lá dentro, não ia colar. Mas como eu poderia garantir que eles viriam? Eu respondi “eles me falaram que vão vir, eles vão vir”. Ficava debate desse tipo. Aí chegou no dia, os caras estavam lá, claro que eles estavam, porque o bar está lá, eles estão lá todo dia, eles não iam deixar de ir porque ia ter o filme. Teve um estranhamento, mas era nisso que eu operava. Tem a ver com a estética. É um modo de operar, mas tem a ver com a estética. Eu acho que foi mais nesse sentido, mas também de entender a estrutura, o horário. A gente assume risco. O meu último curta, que é o Arrimo, tem cinco violações de direitos. O personagem que é o Sassá, canta a música Zezé de Camargo Luciano. Tem uma cena que toca a vinheta da Fox, aí ela derrete o som. Se cair no YouTube, vai bloquear. Tem a música do final, que é um dance, porque o Sassá já foi go-go-boy. O ator que escolhe? Ele que escolheu.

MARCELLA ARNULF: Mas, por exemplo, agora…

ROGÉRIO BORGES: Nesse roteiro, cada versão que eu levava do roteiro, eu debatia com a comunidade haitiana. Teve dia que eles falaram “essa cena não”. Voltava, mudava e apresentava de novo. Só que também debatendo, porque, com os haitianos, se deixasse só na cabeça deles, ia ser um filme super-romântico. Não podemos romantizar, também. Mas, também entendemos que a nossa essência era não fazer o que, justamente, a produtora da cidade grande achava que era o que tinha que ser feito. Porque esse é o diferencial. Se a gente for no mesmo caminho, competir de igual, nós nunca vamos conseguir. Hoje eu vejo. Eu trabalho lá no Polo, também, em Assis. Os filmes que estão rolando lá, eu vejo que têm muito a ver com o que aconteceu aqui. Isso que é louco, porque, por essa rede do ensino, cada um tem uma trajetória completamente diferente, mas, como a gente está junto, debatendo e tal, por mais que a gente não perceba, a gente pega outras coisas, os outros pegam também da gente. Está mudando, mas algo vai ficando também. Algo vai ficando.

MARCELLA ARNULF: Eu também não sei explicar.

ROGÉRIO BORGES: O que será isso que vai ficando? Eu acho que o que também ficou muito do João, nós intensificamos. É uma entrega profunda. Se não for um filme que vai significar muito para quem está fazendo, a gente não tem muito interesse em fazer. Porque lida com expectativa. Por exemplo, na comunidade haitiana em que eu estou, tem três pessoas que querem entrar para o cinema, que estão entrando para o Kino-Olho. Os outros, convidei, convenci e eles vão participar. Se eu não acreditar muito no que eu estou fazendo, eles não vão… Seria muito mais fácil eu chegar na companhia de teatro, fazer uma parceria. Só que eu vou em outro caminho. Na época do João, tinha muita parceria com o teatro. Hoje é mais afastado. Como é essa relação com o teatro? Hoje, tem pessoas do teatro que atuaram em papéis pequenos aqui no meu filme, nesse último. Mas é mais uma coisa ou outra, porque o teatro é muito diferente do cinema, e, no meu ponto de vista, apenas chamar a galera do teatro para fazer um filme, eu acho difícil encaixar. Eu falo isso porque já fizemos. Precisaria ter um método acumulado de atuação para cinema, que as cidades maiores têm. Eu vejo que, dez anos atrás, a galera vinha, fazia um filme por mês. Hoje, as pessoas chegam mais devagar, não sei o que mudou, mas o mergulho não é tão fundo, e quem vai, acaba se envolvendo mais. Você me falou da geografia, do caipira que observa a realidade… existe uma estética de atuação. Não é necessariamente que um ator não seja bom no cinema, talvez ele não seja bom para a estética específica de vocês. Porque um ator, ele pode ir para muitos caminhos, o ator é essa pessoa que pode entrar em várias estéticas. Mas tem uma estética, que é uma estética muito comum, que começou no Brasil até por conta da superação de elenco, do Pixote, do Cidade de Deus, que é esse entendimento da interpretação intranaturalista como o melhor. Parece que o quino tem muito um olhar que é aquele olhar em que você bota a câmera e você quer ver a verdade absoluta daquele personagem, daquela pessoa. Não é um ator interpretando uma estética específica, mas é a vida acontecendo ali.

MARCELLA ARNULF: E você grava um take?

ROGÉRIO BORGES: Depende. Nesse, como é longo, eu estou conseguindo um debate. Ontem eu queria mais um, não deu. Teve uma cena que foi quatro. Quando é um ator, eu acho que ele está muito mais disposto a repetir quantas vezes for. Quando é um não ator, você tem que tomar muito cuidado entre não ficar fraco mas também não se contentar com qualquer coisa. E não ir até o limite da pessoa. Agora tem essas três pessoas que querem entrar para o cinema, então eles estão bem entregues. Um outro está muito curtindo, mas ele tem uma fábrica de pasta de amendoim, o lance dele é outro.

MARCELLA ARNULF: Eles estão só na atuação ou também estão na equipe?

ROGÉRIO BORGES: A ideia inicial era dois estarem na equipe, que eles queriam. Só que eles trabalham de dia de semana.

MARCELLA ARNULF: Como funciona aqui, dentro do Kino-Olho, essa lógica? Você vive do audiovisual, as pessoas vivem do audiovisual, quando elas tem que rodar dia de semana. Como é que funciona isso?

ROGÉRIO BORGES: Acabou sendo um divisor de águas, né? Por exemplo, quando consegui uma bolsa do mestrado, entrei de cabeça. Saí da aula e entrei de cabeça. Outras pessoas não fizeram isso. Quem conseguiu, quem pôde entrar de cabeça, hoje está muito mais inserido do que os que continuam no trabalho formal. É um grande desafio. Grande desafio. Não tem muito o que fazer, sabe? Vamos ter que priorizar isso. Estamos trazendo-os para o Kino pra eles poderem também especializar.

MARCELLA ARNULF: Tem a Frente Territórios, né?

ROGÉRIO BORGES: Que é o Ariel [Henrique] que coordena. Hoje nós estamos em três coordenações de formação, eu, Igor [Rossato] e Ariel. Eu coordeno a parte de especialização e de núcleo criativo. Quem já está dentro, vai amadurecer ou vai especializar, está na frente que eu cuido. O Igor cuida de tudo que é escola, formação para professor e para aluno. E o Ariel está nos territórios, assentamento, quilombo, aldeia e tal.

MARCELLA ARNULF: Então vamos falar desse filme [Diáspora]? Me fala dele. Como é que é esse filme? De onde é?

ROGÉRIO BORGES: Chama A Diáspora Santa. Eu considero que começa lá em 2015, porque tinha um outro diretor, que era aqui do grupo, e que não está mais, mas ele queria fazer um filme sobre a comunidade haitiana. Já tinha bastante haitiano aqui, nessa época. A gente começou a fazer uma pesquisa, e chegamos até um personagem, que chama Jean Angelin. Começamos a fazer uma escuta, ter entrevista com ele, e fizemos a proposta para um curta-ficção. Nesse mesmo estilo, mas essa ficção sempre na fronteira, como o Arrimo, que é documentário, mas é híbrido, na verdade, com partes que são mais ficção e outras menos. A história ia ser meio a partir disso, do Jean que queria ter acesso ao Minha casa, minha vida. Ele tinha que se naturalizar brasileiro, e para isso precisaria pegar um antecedente criminal, que só poderia ser retirado pessoalmente no Haiti. Essa era a trama do curta, ele tentar ir para o Haiti. Acabou que nesse ano, o Kino-Olho estava com cinco ou seis projetos de curta para rodar, e para dirigir é diferente. Você tem que estar muito determinado, e a galera foi desistindo, tanto que, no final do ano, só sobrou o João Paulo, desses seis.

MARCELLA ARNULF: Você falou que o diretor tem que estar muito decidido. Você enxerga que o diretor acaba sendo o produtor também?

ROGÉRIO BORGES: Ah, eu acho que sim, no sentido da articulação. Por exemplo, na hora que faltava um mês para rodar, eu saí da produção. Então, tudo – fechar locação, alimentação, documentação e tal –, eu já não me comprometo com nada. Direção de set, não. Mas produção executiva, normalmente, o diretor acaba fazendo os papéis. Em todos os projetos que entro, eu que tenho que escrever, articular, fazer nascer. Com essa comunidade, a avó sou eu, desde o começo. Hoje mesmo, eu estava resolvendo o negócio de pagamento, que em tese não seria para eu resolver, mas é comigo que eles tratam. Quando alguém tem uma ideia, é o diretor mesmo que envia o projeto, acaba que ele tem que ter um perfil produtor.

MARCELLA ARNULF: Vocês fazem formação nesse sentido, de ensinar a pessoa a ser um diretor produtor?

ROGÉRIO BORGES: Não muito. É bastante o núcleo, que debate linguagem e tal, mas oficina técnica ainda é pouca, a que acontece. No ano, a gente consegue fazer umas três dessas

MARCELLA ARNULF: Não costuma ter perfil de pessoa que quer só produzir?

ROGÉRIO BORGES: Falta. Eu acho que as pessoas têm muita ideia e pouca vontade de mobilizar, ou condição. Mas tem incentivo para esse perfil vir aqui.

MARCELLA ARNULF: É difícil chegar a perfis assim. 

MARCELLA ARNULF:. Estamos fazendo uma investigação sobre a denúncia de que não existe cinema no interior. O que você acha dessa denúncia?

ROGÉRIO BORGES: Eu acho que o próprio trabalho que a gente está fazendo aqui, e vocês e todo o interior, está trazendo já essa resposta, né? Mas depende também de que tipo de cinema se está falando. Um cinema que custa vinte milhões para fazer um filme, realmente, esse não existe, esse está concentrado na capital. Eu lembro de uma frase do Haddad, quando ele era prefeito de São Paulo e todo mundo caiu matando por causa da ciclovia. Ele falou assim: “não vai ter ciclista antes de ter ciclovia. Não vai ter jogador de tênis na periferia enquanto não tiver a quadra de tênis”. Cinema eu acho que é da mesma forma. O investimento que veio de política pública de cota já trouxe uma resposta muito grande. Se você pegar os filmes do estado de São Paulo, por exemplo, que se destacaram nos festivais nos últimos anos, o interior deu um caldo na capital. E se tinha da capital, era a periferia, que também é um grupo que eu vejo muito mais do nosso lado do que nesse cinema hegemônico de milhões e de homens brancos velhos que sempre produziram muita coisa que não teve relevância e custou muito de dinheiro público. Acho que o interior está provando isso. Primeiro, tem muito mais história, muito mais olhar, além daquele que é o hegemônico, que está na TV e tal. Até a própria TV está fazendo isso, está fazendo filme regional. Se pensar cinema brasileiro restringindo a Rio e São Paulo, ou talvez Recife junto, não é cinema brasileiro. É o cinema do Rio, o cinema de São Paulo. Aí nós estamos falando de capital, porque muitas vezes a gente é colocado nesse lugar de ser de São Paulo, mas não, não chega aqui, também. Então acho que é isso, acho que existe cinema. Com o pouco que a gente tem, a gente já consegue fazer filme que é importante por si, que funciona no nosso circuito e consegue chegar em lugares que os de milhões não consegue. Eu acho que essa é a maior resposta.

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Os coletivos de cinema podem realmente substituir as grandes produtoras no interior?

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