Escrito por: Marcella Arnulf
Refletir sobre a existência do cinema no interior de São Paulo é, inevitavelmente, refletir sobre o ecossistema que o sustenta — ou, em muitos casos, sua ausência. Se, por um lado, sabemos que existimos como produtores e realizadores, por outro, ainda estamos distantes de sermos reconhecidos como um sistema coeso, com pilares bem estabelecidos. Esse reconhecimento, contudo, não pode se basear apenas em méritos econômicos ou produtivos, mas deve emergir da forma como esse fazer cinematográfico se organiza em torno de seus valores, práticas e propósitos.
A investigação “Cinema das Margens” revelou que muitos realizadores iniciam suas produções não para agradar ao mercado, mas como uma forma de expressão criativa. Essa característica confere ao cinema das margens uma autenticidade, ao mesmo tempo que expõe as dificuldades de se adaptar a uma lógica hegemônica de mercado.
O Ecossistema e Suas Possibilidades
A formação é o ponto de partida desse ecossistema. Não basta ensinar técnicas, é necessário cultivar um pensamento crítico que reconheça o cinema como um espaço de expressão cultural. Criar nas margens não é apenas replicar modelos, mas construir uma linguagem própria, alinhada às histórias e vivências locais. Esse processo, porém, exige iniciativas inclusivas, muitas vezes menos dependentes de grandes estruturas e mais ligadas a esforços comunitários.
No desenvolvimento de roteiros e narrativas, o interior revela histórias autênticas e poderosas, mas elas frequentemente encontram barreiras para ganhar forma e alcançar seu público. Essas narrativas não são apenas imaginadas, mas também vividas, trazendo uma resistência cultural que desafia a hegemonia das grandes produções. Como podemos criar condições para que essas histórias amadureçam sem perder sua essência? Essa pergunta nos provoca a pensar em novos modelos de criação e suporte.
O fomento é um dos maiores desafios. Políticas com sistema de cotas, como a Lei Paulo Gustavo, PNAB e o ProAC, têm sido fundamentais, mas ainda não atendem a totalidade das especificidades do cinema interiorano, que segue veemente excluído das políticas públicas federais. A questão não é apenas viabilizar projetos, mas fortalecer um sistema que conecte produção, distribuição e público de forma integrada. Como financiar um cinema que valoriza a transformação social tanto quanto — ou mais do que — o retorno financeiro?
A produção, nesse contexto, assume um caráter artesanal. Muitas vezes marcada pela criatividade que compensa a falta de recursos, ela carrega o risco de romantizar a precariedade. Outra dúvida nasce: Como equilibrar o poder transformador dessa prática com a luta por condições dignas de trabalho e produção? É uma reflexão que nos desafia a pensar a produção cinematográfica não apenas como um processo técnico, mas como um ato político.
Na circulação e distribuição, reside talvez o maior gargalo do ecossistema. Em um ecossistema saudável, a distribuição deve ser capaz de ampliar o alcance das obras e gerar impacto significativo. Nesse sentido, escolas, cineclubes e cinemas de bairro podem ser tão ou mais eficazes quanto os modelos tradicionais. A distribuição de impacto surge, aqui, como uma alternativa poderosa. Para além de ocupar grandes salas, trata-se de pensar em como essas obras podem ser exibidas em redes que dialoguem diretamente com as comunidades e públicos-alvo específicos.
O modelo de distribuição de impacto não precisa excluir o modelo tradicional. É possível construir uma abordagem híbrida, na qual filmes com maior apelo comercial busquem ocupar espaços hegemônicos, enquanto obras mais experimentais ou voltadas para nichos específicos optem por circuitos alternativos. Essa coexistência não apenas expande as possibilidades para os realizadores como fortalece o próprio ecossistema, ao diversificar seus canais de circulação e diálogo com o público. Uma abordagem híbrida, que permita que os filmes voltados para o grande público coexistam com produções de nicho, é viável e desejável.
E o público?
Pensar no público é fundamental em qualquer ecossistema cinematográfico. O cinema das margens enfrenta o desafio de dialogar com diferentes camadas de audiência: aqueles que buscam narrativas locais, profundamente enraizadas em suas realidades, e aqueles que desejam ver essas histórias em grandes salas, ao lado de blockbusters internacionais. Reconhecer essa diversidade é essencial.
Outras questões se adicionam: Como educar o público para uma valorização do cinema local que não caia no elitismo cultural? Como construir estratégias que ampliem o alcance das obras sem diluir sua essência? São questionamentos que nos levam a entender o público não apenas como consumidores, mas como parte integral desse ecossistema. É necessário formar espectadores que reconheçam o valor de narrativas locais e, ao mesmo tempo, criar mecanismos que tornem essas produções acessíveis em diferentes formatos.
Para obras que não se encaixam em formatos comerciais tradicionais, os nichos representam um potencial significativo. Essas audiências específicas, muitas vezes mais interessadas na relevância cultural e social do que no espetáculo, encontram no cinema das margens uma conexão autêntica. Ainda assim, buscar espaços hegemônicos deve permanecer como uma possibilidade válida, desde que não comprometa a essência das obras.
E agora, José?
Essas reflexões, mais do que respostas, catalisam outras muitas perguntas. O que significa existir como um ecossistema? A necessidade de validar o audiovisual por métricas econômicas acaba gerando sentimentos como a síndrome do impostor, que atinge muitos produtores que não se reconhecem dentro desse sistema.
Como podemos fortalecer esses pilares sem perder a autenticidade que caracteriza o cinema das margens? Talvez o caminho possa estar em não tentar replicar o mercado tradicional, mas em construir algo que seja genuinamente nosso. O ecossistema do cinema interiorano não precisa seguir modelos preexistentes? Ele pode ser, ele mesmo, um modelo para outros contextos culturais?
Refletir sobre a existência do cinema no interior paulista é refletir sobre as escolhas e possibilidades que esse cinema pode e deve ter. Por mais que seja essencial reconhecer o cinema das margens como uma manifestação cultural autônoma e transformadora, há também o desejo legítimo de acessar maiores recursos e explorar modelos hegemônicos, incluindo a possibilidade de se inserir em mercados mais amplos, com potencial de retornos significativos de bilheteria.
Então, como equilibrar esses dois caminhos? Como construir um ecossistema que permita tanto a exploração de modelos de grande escala quanto a valorização de produções voltadas para nichos específicos e comunidades?
A Luta por uma Nova Mentalidade
É fundamental, portanto, reavaliar o jogo que estamos jogando. A busca por validação dentro de um mercado que não foi desenhado para nós é uma luta inglória. Em vez disso, é possível que tenhamos que defender a construção de um ecossistema que funcione com base em nossas próprias regras, valorizando a cultura local, a identidade comunitária e os propósitos transformadores do cinema das margens. Que possamos construir um cinema que não busque apenas se encaixar, mas que redefina os paradigmas de criação e distribuição do cinema nacional.