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Será que agora começaremos a existir no futuro?

INTRODUÇÃO

Escrito por Marcella Arnulf

O projeto Cinema das Margens se propõe a investigar o cinema fora dos grandes eixos de produção, partindo de uma denúncia instigante: “não existe cinema no interior de SP”. Esta afirmação levantou uma série de questionamentos relevantes para uma exploração do campo atual da criação audiovisual das margens.

Porém, o pressuposto da inexistência de produção cinematográfica contemporânea no interior ignora a possibilidade que ela já existiu no passado?

Essa possível ausência seria um recorte temporal específico ou o cinema sempre esteve concentrado em poucas capitais?

Será que agora começaremos a existir no futuro?

A memória serve para além da análise do presente: ela é fundamental para construir o futuro. Não há nada mais visionário do que alguém que preserva memórias.

Muitas das mazelas sociais e necessidades de afirmação identitária de grupos minoritários nascem de uma demanda diretamente relacionada à não preservação de parte da história. Essa problemática afeta não só o cinema, mas toda a nossa cultura e formação de identidade, Influencia o que ressaltamos nas nossas narrativas e também como replicamos comportamentos sociais. As experiências e visões passadas, independentemente de serem boas ou ruins, têm importância histórica. Preservar as diversas possibilidades de pontos de vista sobre a história permite que todos estejam cientes do que foi digno ou indigno, possibilitando a reestruturação de uma sociedade mais equitativa e diversa.

Em uma das investigações de campo, conversei com Rogério Borges, associado do Kino Olho, um importante grupo de cinema do interior de Rio Claro. Após anos de muitas conquistas, eles finalmente receberam apoio da prefeitura, que cedeu um espaço para ser a sede da associação. O espaço fica no porão de um casarão colonial antigo e conservado no centro da cidade. O lugar era curioso, e perguntei se eles gostavam do espaço, ele me respondeu:

“No começo a gente curtia. Aqui era um depósito, ninguém visitava, então a ideia era ressignificar com a cultura e tal. Mas, a partir desse intercâmbio junto com o Polo (Pólo de cinema do Velho Oeste), nós mergulhamos profundo e vimos que não dá para ressignificar, porque… o teto é baixo, a ventilação é ruim, não foi feito para ser um lugar bom, foi feito para ser um lugar que estava aqui e tinha muito valor para quem estava em cima. Então, se você andar em cima, vai ver que a janela é imensa, mal ventilada, mal bonita e tal, só que daí em cima não tem nem cozinha, embaixo não tem banheiro. Então fomos pensando sobre isso e é uma história muito recente, tipo, cento e poucos anos atrás. E aqui, Rio Claro, é uma cidade muito conservadora. A última cidade do Brasil que acabou com a escravidão foi Campinas, não sei se você está ligado. Rio Claro resistiu até o fim.”

“…o preservador não está focado no presente, nem é alguém ancorado no passado; ele está garantindo a existência de incontáveis futuros possíveis, pois é nessa relação com a história que construímos nossa identidade.”

Com a democratização dos meios de produção, grupos que tiveram sua história apagada e esquecida agora têm a oportunidade de contar suas próprias narrativas e registrar suas vivências através do audiovisual, e iniciativas interioranas como o Pólo do Velho Oeste, Kino Olho e Flafe-Master Shot, formam e dão visibilidade para esses novos realizadores. Contudo, surge uma nova pergunta: esses grupos estariam preservando suas memórias? Poderiam essas histórias se tornar os registros de referência para as próximas gerações, nas próximas décadas ou séculos?

“Além de serem números numa planilha de Excel do órgão municipal, onde essas obras estão armazenadas? Será possível pensar a história do cinema interiorano a partir de algumas delas? Ou no futuro, ainda investigaremos a mesmíssima premissa: “será que existe cinema no interior?”

O pesquisador Hernani Heffner que foi responsável pela área de conservação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) reforça esse pensamento quando diz:

“…se perder esse material a gente estará perdendo não só grande parte da nossa história recente, mas vai perder a possibilidade de acesso da compreensão do que nós verdadeiramente somos. O volume, o alcance e a importância que o audiovisual assumiu na atualidade dão a medida desse trabalho de preservação, dão a medida da absoluta necessidade que ele seja feito, dão a medida do quanto ele contribui de fato para o conhecimento das mais variadas dimensões do que é esse país chamado Brasil. Além disso, se você quer dar conta da arte do cinema tal qual ela foi praticada no país, você tem de se preocupar igualmente com a preservação, numa dimensão de criação estética e artística, que assumiu no Brasil uma grande importância”.

O fato é que ninguém minimamente intelectualizado dúvida da importância de preservar obras, mas quando o recorte se torna preservar um cinema feito as margens, os questionamentos e desafios acerca do tema se expandem/ Considerando uma pequena cidade do Vale do Paraíba, região declarada oficialmente como área de interesse de produção cinematográfica para o Governo do Estado de SP em 2024, a cidade de Jacareí, possui um pouco mais de duzentos mil habitantes e segundo mapeamento oficial da fundação cultural da cidade, nos últimos dez anos, foram registrados mais de 300 filmes de realizadores locais. Porém, todos que vivenciam a invisibilidade de sua arte sabem que não foram essas centenas de obras a razão para tal interesse.

No entanto, quais serão os filmes que se tornaram referências, para futuros cidadãos, estudantes e artistas deste território? Serão esses 300 filmes das margens, a fonte de pesquisa e representação das perspectivas sobre o território do Vale do Paraíba, ou inspiração para reflexão sobre o que foi o cinema nacional ou regional na década de 2020? Eles farão parte da história apenas quantitativamente ou como algo de valor? Além de serem números numa planilha de Excel do órgão municipal, onde essas obras estão armazenadas? Será possível pensar a história do cinema interiorano a partir de algumas delas? Ou no futuro, ainda investigaremos a mesmíssima premissa: “será que existe cinema no interior?”

Há uma aparente problemática a ser considerada na escolha do que será preservado: a relevância de uma obra. O que esses 300 filmes produzidos de forma marginal, por artistas desconhecidos numa cidade do interior de SP, têm de tão especial para serem devidamente preservados?

É necessário voltar ao princípio inicial deste artigo e reforçar a ideia do preservacionista como um visionário. A fim de gerar um paralelo geral, recorro a um exemplo clássico da literatura: Lima Barreto morreu na miséria e somente anos depois foi reconhecido. Sua criação estava documentada e divulgada em algum lugar, possibilitando que fosse acessada, observada, reconhecida e valorizada em algum momento após seu falecimento.

O escritor Lima Barreto é um exemplo que ficou famoso de alguém que foi marginalizado em sua época e que, assim como outros autores e obras, foi e continua sendo deixado à deriva, devido à falta de berço. No entanto, o preservador não está focado no presente, nem é alguém ancorado no passado; ele está garantindo a existência de incontáveis futuros possíveis, pois é nessa relação com a história que construímos nossa identidade.

Uma história apagada precisa ser recriada, da mesma forma que somente um grupo com a história esquecida precisa encontrar sua identidade perdida. A luta identitária e progressista ampliou a visibilidade de espaços de minorias, no entanto, sua qualidade continua sendo colocada à prova por recortes estéticos e narrativos. De alguma forma, esses elementos servem à mesma elite que decide o que deve ser apreciado, distribuído e, consequentemente, preservado. Obras que promovem a inclusão e diversidade, geralmente só são valorizadas quando exploram sua realidade seguindo as regras estéticas e narrativas imperantes. Assim acontece com os artistas que desafiam as tendências atuais.

Obras audaciosas e inovadoras, que fogem do padrão estabelecido, são frequentemente rejeitadas e esquecidas, mesmo antes de terem sido apreciadas. Esse infeliz fenômeno, no entanto, não acontece apenas com quem está às margens sociais ou territoriais. Do outro lado do paralelismo, está Oswald de Andrade, um aristocrata da elite cultural brasileira, que, numa condição privilegiada em relação a Lima Barreto, se assemelha a ele enquanto o arquétipo fora da lei, não sendo reconhecido em seu tempo, sendo relegado às margens por ser disruptivo em sua linguagem, estética e forma de decifrar o mundo.

Esses dois autores apesar das adversidades, foram preservados para acesso futuro. Mas, será que Lima Barreto e Oswald de Andrade não fazem parte de um grupo invisível maior? Este grupo possivelmente abrange diversos autores que, ora por não pertencerem a um círculo de destaque na época, ora por irem de encontro às tendências mercadológicas, foram negligenciados e deixados de fora das prateleiras das grandes livrarias e bibliotecas. Portanto, é possível conjecturar que muitos bons autores foram impedidos de serem revisitados pelas futuras gerações. Guardadas as proporções elitistas e dificuldades do meio de produção cinematográfica, o mesmo acontece no cinema.

A identidade cultural de uma comunidade pode evoluir, mas nunca deve ser artificialmente criada, romantizada ou reinventada por desconexão com suas origens. O preservacionista entende isso. Para ele, é essencial recordar quem éramos e como éramos, sem preocupação excessiva com a percepção de valor atual da obra. Sem dúvida, direcionar um olhar atento para o que tange os desafios da preservação de forma abrangente e a difusão de forma popular, é crucial para continuarmos a re-existir em uma multiplicidade de encontros e construções em constante relação.

O cinema atual interiorano seria uma extensão, reforço ou até contraponto do cinema instituído por movimentos antepassados?

Ou talvez não haja essa conexão com nosso passado, porque assumimos que ele nunca ocorreu? Seria o cinema interiorano uma semente plantada somente na contemporaneidade?

O projeto Cinema das Margens se dispõe a investigar e publicar predominantemente sobre os movimentos contemporâneos, e não apenas sobre suas exceções e talentos individuais. Mas, diante de todas as reflexões oriundas deste início de pesquisa investigativa, percebemos que para nos debruçarmos sobre a existência do hoje devemos começar pelo passado. Em geral, o cinema caipira é desvalorizado e estereotipado, e é de suma importância para a construção e afirmação da nossa identidade cultural genuína investigar os precursores desse processo.

Ao olhar para as obras do interior de São Paulo nas últimas décadas, será que é possível perceber a estrutura social e estética que deságua num modo de fazer cinema no interior?

Seja sobre os meios produtivos, temas ou estéticas, a origem de um cinema caipira influenciou os artistas do hoje? A história se firma como raízes no nosso imaginário ou estamos começando uma plantação do zero?

Dentro das limitadas possibilidades e recursos que possuímos, estamos em busca de registros do cinema das margens do interior paulista e precisamos contar com a ajuda de toda a rede de realizadores das margens.

Por enquanto, a questão que ressoa é: será que agora começaremos a existir no futuro?

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O que definirá mais o futuro do cinema interiorano: a preservação de sua memória ou a inovação das narrativas?

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