Neste cenário de desenvolvimento periférico,o interior paulistano vem se destacando. Além do Kino-Olho, o Estado de SP conta ainda com o Polo Audiovisual do Velho Oeste, uma cooperativa que procura justamente fomentar o cinema da região do Oeste Paulista, por meio de ações de formação, produção e circulação de filmes.
Na região de Assis, a cena audiovisual é marcada pela resiliência e pela colaboração. Guilherme Xavier, coordenador de projetos do Velho Oeste (em Assis), conta que o polo audiovisual surgiu da necessidade de descentralizar a produção cultural e dar voz a histórias e talentos que não encontravam espaço no eixo tradicional. Em suas palavras, “A ideia era criar um cinema local, algo que dialogasse com a comunidade e refletisse as realidades do interior”. Esse movimento tem atraído cada vez mais pessoas que desejam fazer cinema de forma independente, criando redes de apoio e parcerias com outras cidades da região, como Londrina e Assis. Confira parte da entrevista!
A entrevista com Guilherme Xavier, idealizador do Polo Audiovisual do Velho Oeste, revela os caminhos e desafios para a criação de um movimento cinematográfico no interior paulista. Partindo de experiências pessoais no cinema periférico de São Paulo, Guilherme traz reflexões sobre a descentralização do audiovisual e a necessidade de estruturar uma cadeia produtiva completa na região. Com uma abordagem que une formação, produção e circulação de obras, o Polo emergiu como um catalisador para histórias locais, ressignificando territórios e fortalecendo uma rede colaborativa entre cidades.
MARCELLA ARNULF : Me fala um pouquinho como foi que surgiu o Polo, de onde que veio essa ideia.
GUILHERME XAVIER: O Polo surge em 2015, enquanto concepção de um projeto de fomento ao cinema aqui na região. Acho que, inevitavelmente, tem que passar por uma jornada individual, também, dessa história… Eu fui para São Paulo, trabalhei lá. De lá, eu comecei a trabalhar com temáticas periféricas, especificamente o hip-hop. E aí fiz o primeiro documentário do Sabotage [Sabotage Nós] e fui meio que saindo do centro de São Paulo em direção à periferia. Acabei no extremo sul, na Zona Sul, que é onde eu filmei esse meu segundo filme, o Sobre Coragem!. Esse filme tratava do conflito de pessoas que moravam em São Paulo, mas que tinham uma relação muito forte com a sua cidade, com seus locais de origem. Então tinha todo o drama dessas pessoas, e a questão urbana era muito forte. Esse foi o meu último trabalho em São Paulo, e já vinha se falando de descentralização do audiovisual há bastante tempo. Era uma conversa que estava em alta por conta do cinema digital e tudo mais, a Ancine começava a fazer alguns programas de descentralização, então tinha os arranjos regionais, os NPDs [Núcleos de Produção Digital].
MARCELLA ARNULF: O regional contava muito mais para outros estados.
GUILHERME XAVIER: É, mas, de certa forma, estava saindo do eixo Rio-São Paulo, e esse era o movimento. Aí eu vim para o interior, de bobeira, vim tirar umas férias. Mas comecei a pensar no que seria um cinema daqui. O que precisaria para um cinema daqui acontecer? Dado que nunca tinham feito cinema nessa região, então não tinha o universo de histórias, e isso era instigante, enquanto um território virgem para o cinema. Ah, tinham pequenas expressões. Tinham filmado um curta aqui, em Assis, há um tempo. Comecei a pensar “o que é que precisa para isso aqui virar, para fomentar, desenvolver um cinema aqui”. O primeiro que a gente fez foi se organizar regionalmente. Tinha mais pessoas no entorno com essa mesma ideia, que estavam em jornadas individuais, fazendo publicidade, um monte de coisa, mas que queriam mesmo era fazer cinema. Era o Guilherme Peraro, de Londrina, que tocava uma produtora lá, a Kinopus, há um tempo. Tinha o pessoal da Muv Filmes, de Bauru. Na época, tinha o Cristiano [Anechini], de Marília, que a gente chamou para uma primeira conversa, mas acabou não rolando. Tinha Ourinhos, com um pessoal da TV Sun. Comecei a me articular, mas o que deu liga mesmo foi esse eixo Londrina-Assis-Bauru, aí se formou uma equipe que começou a trabalhar junto. Formou-se uma rede dessas três cidades.
MARCELLA ARNULF: trabalhavam em quê?
GUILHERME XAVIER: Em publicidade institucional, conteúdo de marca, enfim. Surgiu a Oeste. Oeste Cinema. A galera trabalhava em torno da Oeste Cinema, a produtora.
MARCELLA ARNULF: Todo mundo era sócio?
GUILHERME XAVIER: Não, todo mundo era frila, mas ela era a central de trampos que organizava essa rede. E aí, como a gente estava fazendo comercial, a gente queria que virasse cinema, no fim das contas. Com essa galera. Então começamos a formar umas pessoas daqui, que começaram a trabalhar. A galera começou a pegar os trampos, formou uma equipe autônoma de Assis… Já não dependia tanto mais dessas cidades. E para viabilizar o cinema mesmo, a gente criou o projeto do Polo Audiovisual do Velho Oeste. Ele já tinha sido criado nesse primeiro chamamento da regional, mas a gente começou a estruturá-lo, como que ele poderia acontecer. A gente entendeu que, para o cinema existir, a gente precisava dar conta da cadeia produtiva do início ao fim, porque a gente não tinha nada, aqui. Então a gente precisava formar pessoas, precisava viabilizar a produção dos filmes, com recursos, e precisava fazer esses filmes chegarem nas pessoas. A gente precisava circular, fazer um festival. Aí, dentro dessas três ideias, de formar, produzir e circular, a gente criou o Polo Audiovisual. Foram as bases estruturantes do Polo. Formação, apoio à produção e circulação.
MARCELLA ARNULF: Sempre foi assim.
GUILHERME XAVIER: Desde o começo, segue até hoje. Desde a primeira ideia, era assim. E a gente começou a apresentar esse projeto para possíveis financiadores. Aí casou da Fundação Educacional do Município de Assis (FEMA), para a gente ter um viagem de formação legal. A possibilidade de ter no audiovisual um negócio da juventude, que a molecada vai curtir e vai poder trabalhar com isso. Eles gostaram dessa proposta. A gente também tinha um cinema parado aqui na cidade, um cinema de rua. Criamos uma proposta de restaurar o cinema, que passou pelo Conselho de Cultura, pela Secretaria de Cultura e viabilizou que a FEMA, no caso, reformasse esse cinema para o polo audiovisual. Hoje a gente está com 700 alunos em formação.
MARCELLA ARNULF: Você que está à frente da formação?
GUILHERME XAVIER: Estou nesse outro, agora, que é o Eixo Apoio à Produção.
MARCELLA ARNULF: Estava antes na formação? Ou não, você nunca esteve na formação?
GUILHERME XAVIER: Ah, só na concepção da ideia de formação. Estruturei a ideia, mas a execução nunca estive, só dou curso de vez em quando. No Apoio à Produção, a gente conseguiu emenda parlamentar para comprar equipamento para quem quiser filmar.
MARCELLA ARNULF: O seu CNPJ, que era privado, virou associação?
GUILHERME XAVIER: Não, são coisas separadas.
MARCELLA ARNULF: Ah, vocês abriram uma associação.
GUILHERME XAVIER: Abrimos uma cooperativa.
MARCELLA ARNULF: Uma cooperativa. Por que cooperativa e não associação?
GUILHERME XAVIER: A gente criou uma cooperativa, a princípio, porque estava dando uma perspectiva da economia solidária, de criar um novo sistema de divisão de recursos, de responsabilidades, mas acabou que a alíquota de imposto é muito alta e a gente não conseguiu, através de cooperativa, receber repasses diretos do governo, por exemplo. Sei lá, a prefeitura, se é parceira, ela pode doar para uma associação um terreno para construir uma sede. A associação pode receber emenda parlamentar. E a cooperativa não pode. Mas a cooperativa, quando a gente criou, podia concorrer em um edital com infinitos projetos. Não tinha limite. Para a gente fazia mais sentido, na época. Mas a gente está justamente transicionando. Está rolando. E rolou, dentro do apoio à produção. Acho que, até hoje, foram 18 curtas que rolaram.
MARCELLA ARNULF: Como que a gente leva o público?
GUILHERME XAVIER: A gente tem o festival Curta Velho Oeste, que é o festival de curtas do interior do Brasil, em que a gente conecta essa nossa cena às cenas dos outros interiores. Os realizadores vêm para cá, para o festival mesmo. A ideia é proporcionar esse encontro e ser a janela de exibição de toda essa produção, dos filmes de oficinas, dos filmes locais, para a cidade. Para essa rede que se forma em torno do cinema. O público do festival é a equipe desses filmes todos, que são dos territórios, das aldeias, dos assentamentos, das periferias, dos filmes que vieram dos cursos formativos, das equipes. Com cada pessoa de uma ficha técnica que chama seus amigos e parentes, você já lota o cinema, que tem 500 lugares. Fecha esse ciclo de um cinema, que é mais comunitário.
MARCELLA ARNULF: A estratégia de uma exibição, um museu de público, é a partir de quem produz. Se a pessoa não está envolvida na produção, dificilmente vai.
GUILHERME XAVIER: Vai, vai. Acho que é meio a meio. Porque é tudo gratuito.
MARCELLA ARNULF: Tem um foco bem regional, local.
:GUILHERME XAVIER: É, tem o Panorama Velho Oeste. São duas mostras, Panorama Velho Oeste e Competitivo Interior Brasil. Panorama Velho Oeste é tudo que está sendo produzido aqui.
MARCELLA ARNULF: Você sente que esse movimento do Polo expandiu também para produções fora Polo? Ou ainda o cinema aqui é muito movimentado exclusivamente pelo Polo?
GUILHERME XAVIER: Acho que tem ramificações assim que vão orbitando e também ganhando independência, né? O Polo é um ativador. eito multiplicador, né? A ideia é essa mesma: quanto mais produtores tiver, melhor. A galera se organizar. Se organizar por afinidade, por estética.
MARCELLA ARNULF: E como é que são as escolhas dos filmes do polo? Que vão ser produzidos pelo polo?
GUILHERME XAVIER: O polo não produz. Ele apoia a produção. Quem produz são essas produtoras ou coletivos. O polo só produz filme de formação.
MARCELLA ARNULF: E essas formações, elas estão mais ligadas à perspectiva de transformação social, de autonomia, de empoderamento das pessoas ou ligadas à profissionalização mesmo?
GUILHERME XAVIER: É, então, tem três frentes de formação, né? Uma é de profissionalização. Os Núcleos Criativos são os cursos de especialização, então é roteiro, fotografia, arte – todas as áreas, grandes áreas. Um ano é dos cursos introdutórios, no ano seguinte são os de especialização, sempre bianuais, voltados a isso, à profissionalização. Territórios já é uma perspectiva de ativismo político, mesmo. Hoje, acho que são quatro, cinco territórios, aldeias, quilombos, assentamentos, em que a galera passa um tempo dentro do território produzindo um filme, uma narrativa e trocando conhecimento com esses territórios. E o Cinema e educação é nas escolas. É uma perspectiva de ativismo também, mas é também de alfabetização audiovisual, um trabalho mais pedagógico mesmo, voltado para a criança. A ideia é sempre que esse recurso, ao invés de investir em estruturas, seja investido em pessoas, que vão continuar trabalhando e mantendo a chama viva da coisa. E capazes de produzir seus próprios temas, seus próprios filmes, narrativos e tudo. Então, boa parte das formações – as profissionalizantes, inclusive –, são voltadas a isso. Começa sempre com o curso de roteiro, porque dentre esses roteiros vai se produzir um filme ao final do curso.
MARCELLA ARNULF: O Robôs [Ainda Restarão Robôs nas Ruas do Interior Profundo] saiu de onde?
GUILHERME XAVIER: O Robôs saiu do curso de roteiro que o Niel [Daniel Rone] fez. Foi nesse momento que ele teve a ideia. Depois a gente desenvolveu internamente, aqui, desenvolveu junto. Mas o dispositivo foi o curso de roteiro. Ele é um filme forte, narrativamente. A gente está numa tendência, dos filmes, principalmente os curtos, de se resolver com questões do afeto, sempre com momentos bonitos, pontos físicos do afeto. Não são filmes que, de alguma forma, propõem alguma perspectiva de organização das revoltas das pessoas, algum tipo de enfrentamento mesmo. Eles sempre ficam no “Ah, o mundo pode estar uma bosta, mas tudo bem, você tem um momento bonitinho”. Eu acho que o Robôs chega rasgando com isso, também. Ele tem uma perspectiva de classe muito forte, que é o que o Niel traz, é um momento político hiper conturbado, que é o do fascismo, o bolsonarismo aqui na nossa região. Ninguém esperava que, daqui, surgisse um filme político do interior, nesse momento, e ele vem com essa novidade. Ele não tem uma estética que segue referenciais europeus, porque não vem de um repertório cultural muito elaborado, vem de um lugar de energia orgânica, trabalha a temática periférica num território conservador, e acho que ele tem uma energia, mesmo de direção, que é forte.
MARCELLA ARNULF: E ele abriu portas?
GUILHERME XAVIER: Abriu bastante, abriu várias, porque… Ah, o pessoal ficou curioso para saber o que vinha mais desse lugar. Viu o primeiro filme, de onde ninguém esperava, e falou “caramba, estão fazendo um filme, fizeram um filme bom”. Ele começou a ganhar os prêmios e foi gerando uma curiosidade. De alguma maneira, o cinema funciona a partir dessas relações que você cria, né? Isso é bizarro e, ao mesmo tempo, é importante. Mas é bizarro, porque o filme não fala por si só; nem os movimentos do cinema falam por si só. Eles precisam que o filme esteja no lugar, e a partir dali criar conexões para as coisas poderem acontecer. Essa semana, a gente estava lá na SEDA, a Semana do Audiovisual do Mídia Ninja, para dar um exemplo. Foi toda a galera do Polo para falar sobre o movimento que está acontecendo aqui. Como que a galera chegou lá? A gente estava em Vitória (Espírito Santo) com o Robôs e conhecemos a galera do Ninja, que ficou interessado pelo movimento da cena daqui e chamou para estar lá na SEDA, na semana, no congresso. É esse tipo de coisa que vai acontecendo a partir do filme. Não é esse sucesso liberal e enganoso que o cinema propõe, de que um em cada um milhão vai ser gênio, vai fazer um puta filme, vai ser aclamado. Isso não adianta nada, na medida em que tem uma relação bem comunitária, aqui, de pessoas que estão se envolvendo com o cinema, que estão vendo a história da vida mudar os territórios, começando a falar sobre si mesmas através dos filmes. O retorno, o impacto social, essa ferramenta social não se compara com a ideia de uma pessoa ter sucesso e ficar comendo empadinha em festival e bajulando crítico. Nunca foi essa a ideia. É tentador, quando acontece, porque você fica “ó, que massa!”, mas, quando volta para a base, você vê que o trabalho tem outra função, outra ideia.
MARCELLA ARNULF: Você fala bastante sobre isso, né? Da representatividade, de se colocar em tela, de transformação social e dessas expressões narrativas. Quando a gente vê as expressões culturais – como dança popular, teatro, música regional –, elas têm esse lugar da representatividade e da narrativa, mas também vêm muito dessa necessidade da expressão artística em si. As pessoas saem nesse lugar, elas precisam cantar, elas precisam tocar, elas precisam atuar, elas precisam se colocar. Você sente que existe esse movimento no cinema? Tipo, “eu preciso filmar”?
GUILHERME XAVIER: Nossa, não sei. Não sei. Acho que filmar, não. Acho que precisa contar as próprias histórias. Nesse sentido, sim.
MARCELLA ARNULF: Mas por que o cinema e não uma música?
GUILHERME XAVIER: Porque o cinema é o que é mais tentador hoje. É o que a gente consome mais, numa sociedade que é movida por imagens, som e vídeo. É audiovisual o tempo todo. E você vê todo mundo consumindo audiovisual, e você está assistindo outros lugares, que estão representados no cinema.
MARCELLA ARNULF: Mais pelo potencial de onde pode chegar do que propriamente da necessidade de fazer aquilo?
GUILHERME XAVIER: Não, eu acho que, no nosso imaginário do que é contar uma história, hoje ele é audiovisual. Como a gente projeta contar uma história, como a gente consome histórias, hoje é audiovisual. São poucas pessoas que leem, a maior parte consome histórias pelo audiovisual. Então, naturalmente, a gente projeta essa vontade através do audiovisual também, no próprio audiovisual, como uma ferramenta social poderosa. O cinema tem esse poder de encantamento. A gente tem o caso, por exemplo, do Niel, teve um filme divulgado, filmado no nosso bairro, que chegou, sei lá, na França. A gente chega lá, fala de cinema, todo mundo quer fazer cinema também. Tem esse efeito multiplicador. Os meninos do funk daqui, de Assis, já atuaram em dois, três filmes. A galera quer fazer cinema agora porque tem essa magia. Caramba, porque cinema é uma coisa tão distante, que sempre deixado tão distante das pessoas que não têm condição, e quando as pessoas que não têm condição, ou quando os amigos delas estão fazendo cinema, elas falam “é possível, quero fazer cinema também”. Tem um efeito contagiante.
MARCELLA ARNULF: Mas é interessante… É como se não fosse a linguagem, especificamente…
GUILHERME XAVIER: Não é a linguagem.
MARCELLA ARNULF: O poder de onde ela pode chegar, ou esse divulgamento.
GUILHERME XAVIER: Isso é um ponto de partida que muda tudo, eu acho. Porque pouca gente aqui, quase ninguém vem do mesmo, fez curso de cinema… Ninguém sonhou em fazer cinema, eu acho.
MARCELLA ARNULF: Isso é muito louco, né?
GUILHERME XAVIER: É muito louco, é verdade.
O cinema no interior de São Paulo está ganhando uma nova identidade. Longe dos holofotes da capital, movimentos audiovisuais inovadores estão emergindo, impulsionados por práticas colaborativas e horizontais.
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