Toda narrativa finca seu eixo numa terra. Mas em qual porção de terra você crava sua palavra? Essa é uma pergunta que o roteirista e dramaturgo Luís Alberto de Abreu nos ajuda a iluminar. Mestre das artes cênicas e com o talento lapidado de um trovador, Abreu abre nesta entrevista sua caixa de causos e nos conta sobre o caminho de quase quatro décadas entre teatro, tv, literatura e cinema.
Em sua obra e pesquisa, Abreu mergulha, dentre tantos rios, nas tradições populares do Brasil e suas peças são como uma feira livre de personagens, onde reis, palhaços, heróis e vilões se encontram para encenar os dramas e as humores da vida cotidiana. Mas suas criações e olhar para os interiores transbordam o palco. Aos poucos, o autor passou a chegar também nos lares brasileiros e provavelmente compõe imaginário televisivo de você que nos lê.
No audiovisual, ele fez do sertão um cenário de epopeia com “Hoje É Dia de Maria”, adaptou Machado de Assis com “Capitu”, Suassuna com “A Pedra do Reino” além de outras série, novela, especiais. No cinema, seus roteiros são como cantigas de desafio, travando temas como a luta pela terra em “O Tronco”, a força das ocupações em “Era o hotel Cambridge” ou como em “Narradores de Javé”, que explora a memória e a oralidade em uma pequena comunidade.
Em uma quarta que o sol castigava no Vale do Paraíba, fizemos coro aos seus narradores de Javé e demos também espaço à memória e à palavra. Puxamos nossas cadeiras de fio virtuais e em uma sala online, entre São José dos Campos e Caçapava, trocamos dois dedos de prosa sobre sua trajetória. Trocamos outros muitos dedos também de poesia, roteiro, dramaturgia e todo gênero textual e tema que a conversa pedia. Começamos pelo começo. Ou ao menos um começo possível, o começo de Abreu no audiovisual:
Deivid: Queria começar falando sobre o jovem de São Bernardo, interior de São Paulo, que começava sua trajetória no audiovisual. Como foi esse início?
Abreu: Eu comecei lá atrás, na década de 70, querendo fazer cinema. Mas, naquela época, era difícil. Só tinha a USP como escola de cinema, e eu, morando em São Bernardo, não tinha como ir pra São Paulo. Então, acabei fazendo teatro. Fiz teatro amador na UBC e, depois, fui pra São Paulo. Lá, comecei minha carreira em teatro e, anos depois, tive a chance de trabalhar com cinema.
Deivid: Você falou que o cinema era muito caro e concentrado no eixo Rio-São Paulo. Como foi lidar com essas restrições de cara?
Abreu: Era muito restrito. O cinema era caro, e não havia digital. Comecei no celuloide, e o material não podia ser desperdiçado. Entrei no cinema por meio da Lili Café¹*, que me convidou para trabalhar no roteiro do primeiro longa dela, “Kenoma”. A partir daí, comecei a entender a diferença entre a dramaturgia do teatro e a do cinema. No teatro, a palavra é central; no cinema, é a imagem e a ação externa.
Deivid: E como foi o processo de se firmar como roteirista, especialmente num período em que essa profissão ainda não era reconhecida?
Abreu: Mudou muito. Naquela época, as pessoas nem sabiam o que era dramaturgia ou roteiro. O cinema nacional, até hoje, às vezes não valoriza tanto o roteirista, mas isso está mudando. Hoje, com a TV e o streaming, há mais espaço para roteiristas, e existem cursos e formações para isso. Quando comecei, era tudo muito difícil, e não havia quase ninguém que ensinasse. Agora, há uma profissão reconhecida, e o campo tem crescido.
Deivid: Você mencionou a importância da formação. Como você vê esse papel, especialmente no interior?*
Abreu: A formação é essencial, mas no interior é ainda mais desafiadora. As pessoas às vezes não se sentem capazes, porque o artista foi muito mitificado. Há uma ideia de que o talento nasce com a pessoa, mas isso é um equívoco. A arte se ensina e se aprende, mas de uma forma diferente, não como se ensina matemática, por exemplo. É preciso criar um ambiente propício para a criação, e o professor tem que abrir possibilidades. No interior, esse ambiente é ainda mais necessário, com apoio do poder público para fomentar a cultura local.
Deivid: Essa figura do gênio que você cita e a humanidade está tentando quebrar desde Renascimento, penso, do artista como gênio. Quais passos você acredita que quebram esse gênio? O que você acha que ainda falta para a autoestima de quem é do interior, de fora do eixo, se ver como um possível cineasta?
“Sempre achei que o eixo do mundo é onde você está. Se eu estou em Caçapava, meu eixo é aqui. Se eu estou em Nova York, meu eixo é em Nova York. O problema é que muitas pessoas acreditam que seu eixo está longe, em outro lugar.”
Abreu: É, porque tem essa coisa… Eu sou suburbano, nasci em São Bernardo do Campo, e tem toda essa mitificação da grande metrópole. Agora, sempre achei que o eixo do mundo é onde você está. Se eu estou em Caçapava, meu eixo é aqui. Se eu estou em Nova York, meu eixo é em Nova York. O problema é que muitas pessoas acreditam que seu eixo está longe, em outro lugar. Hollywood, por exemplo. Mas não é assim. Vai mudar o sistema de produção se você está em Caçapava. Vão mudar as relações. Então, você tem desafios que são interessantes para o bem e para o mal.
Então, vai ser pior estar em Caçapava fazendo cinema? Vai. Mas também vai ser muito melhor. As cidades pequenas, por aí, você reúne uma equipe muito mais facilmente. Gente que quer trabalhar mesmo. Estou tendo agora uma experiência muito legal com um grupo de animação, cinema de animação e stop motion. A gente não quer facilidade; queremos desafios. Começamos em Monteiro Lobato e agora tem gente de São José. E a coisa está pegando fogo. Nessas pequenas cidades, as relações são muito mais fáceis e permeadas por uma certa humanidade diferente. Em São Paulo, ninguém te chama para fazer um trabalho só pela ideia. Lá, a relação é muito mais financeira.
Deivid: Você falou do poder público. Agora a gente está em um momento específico, até divisivo, da história recente do audiovisual, com investimento grande de alguns fomentos, como a Lei Paulo Gustavo. Quais os cuidados que você enxerga como necessários para que esse momento não seja apenas um suspiro?
Abreu: Eu sou muito crítico, Deivid. Às vezes, sou muito crítico com relação às leis de incentivo. Acho que elas são necessárias e obrigação do Estado. Estamos num momento em que o Estado está cumprindo sua função. Mal ou bem, com pouca verba, sem contemplar uma série de coisas, mas cumprindo. Agora, o artista também tem que cumprir sua função. Ele não pode ficar à reboque do Estado. A função dele é criar, independente do Estado ou não. Essa coisa de criar só com lei de incentivo… Não, cara. Se tiver lei, ok. Se não tiver, vamos correr atrás. Porque a função do artista é criar arte, ele não pode ficar à mercê do Estado o tempo inteiro. Ou então se tornar um funcionário público. Porque isso aconteceu muito com o teatro e pode acontecer com o cinema.
“A arte é uma necessidade.“
Deivid: No caso dessa lei, se abriu até uma discussão que tem a ver com esse projeto. Uma das máximas nas definições de como seria a alocação de recursos era de que devia ser concentrado em São Paulo, porque não existe cinema no interior. Como te soa essa frase?
Abreu: Eu acho que a função do Estado, talvez a função primeira e a principal, é o fomento, é o apoio. Então, se Caçapava não tem grupo de cinema, é a mais necessitada do apoio governamental. É justamente o contrário dessa visão que se tem. Essa mentalidade do governo está contaminada por essa visão da arte como mercadoria. Isso é um problema, porque a arte é uma necessidade.
Deivid: Um dos argumentos de defesa do setor é, inclusive, o impacto na economia. Geralmente reagimos mostrando esses números e batendo no peito que somos uma indústria. Que importância você dá a esses números?
Abreu: Mas isso é importante. Alargar o máximo possível o público que entra em contato com a arte. Sim, isso é. Mas não que isso seja determinante. Inclusive, que seja determinante o público pagante. Não, o público é público.
Após uma pausa, voltamos a falar das obras que Abreu criou em sua jornada e, inevitavelmente, se destaca sua versatilidade. Nestas décadas, ele é um dos poucos no país que passou pelo teatro, tv, cinema, novela e literatura com tamanha solidez. Falamos sobre:
Deivid: Como você percebe a diferença desses formatos todos? Em algum se sente mais confortável?
Abreu: Com relação à linguagem audiovisual, o fundamento está no cinema. Não tem para onde correr. O cinema criou essa linguagem. Então, eu tenho um carinho muito grande por essa linguagem que é de cinema. Às vezes, alguns formatos perdem muito da linguagem cinematográfica, como as novelas, que têm muito mais diálogos do teatro, mas sem a síntese e a poética teatral.
Deivid: Você mencionou que gosta de transitar entre as linguagens…
Abreu: É essencial para mim entender onde o público está e por que ele está ali. A compreensão das novas mídias, como o TikTok, não é apenas uma estratégia de alcance, mas também uma forma de entender a sociedade e ajustar minha comunicação artística. Não adianta eu ficar só no refinamento das imagens cinematográficas se o público está em outro lugar. Preciso aprender com eles para fazer algo relevante.
Deivid: E como isso tem influenciado o que você tem feito atualmente?
Abreu: Tenho trabalhado em projetos diversos. Recentemente, colaborei com Lily Caffeca em um filme chamado “Os Filhos do Mangue”, que foi exibido no Festival de Gramado. Também estou envolvido com animações no Centro PPA, onde, além de escrever roteiros, continuo contribuindo com a criação desses projetos. No teatro, a presença dos amigos me mantém ativo, e, no cinema, tenho vários projetos em andamento.
Deivid: Sobre esses projetos, você pode falar um pouco mais sobre o que está acontecendo com as animações e outros trabalhos?
Abreu: No Centro PPA, fizemos três curtas. Eu dirigi o primeiro, e os outros dois foram dirigidos por Rodolfo Pinotti, um talento local de São José dos Campos. Embora eu não esteja dirigindo todas as animações, continuo escrevendo roteiros e acompanhando o desenvolvimento dos projetos. No teatro, minha participação é mais constante, pois os amigos sempre me envolvem.
Deivid: E quanto à questão da identidade cultural no audiovisual brasileiro, especialmente fora dos grandes centros?
Abreu: A questão da identidade é complexa. No passado, buscava-se uma identidade nacional, mas isso muitas vezes divide mais do que une. No Brasil, a identidade é uma unidade na multiplicidade. Cada região tem sua própria “cara” cultural. A produção audiovisual no interior, por exemplo, deve refletir essas especificidades e adaptar-se às condições locais. O desafio é encontrar uma linguagem que funcione dentro das limitações e realidades de cada lugar.
Deivid: Você acredita que a falta de infraestrutura nos interiores afeta a produção?
Abreu: Com certeza. O modo de produção em cidades pequenas não pode ser o mesmo do Rio de Janeiro ou Hollywood. Devemos adaptar os recursos e criar uma linguagem viável para o local. No interior, muitas vezes é necessário improvisar e encontrar soluções criativas para superar as limitações.
Deivid: E quanto à distribuição do audiovisual fora dos grandes centros?
Abreu: A distribuição é um ponto crucial. Há uma grande produção no interior que muitas vezes não chega ao público. O papel do governo é fundamental na organização e distribuição desses conteúdos. É preciso criar circuitos de exibição e fomentar a visibilidade dessas produções. Se a produção não é vista, não tem como crescer e se desenvolver.
Deivid: E quando você olha para o ambiente que temos hoje… como você enxerga o futuro do audiovisual no interior?
Abreu: O audiovisual já está crescendo no interior, mas com apoio e fomento, o crescimento seria mais rápido. A tecnologia digital facilitou muito, permitindo que qualquer pessoa com um celular possa fazer um filme. Mas é preciso conhecimento, especialmente sobre a sintaxe visual, para organizar essas imagens de forma significativa. É isso que precisa ser ensinado, para que o interior continue a se desenvolver e produzir cada vez mais. E aí, tem que criar esse movimento, né, Deivid? Eu acho que, por exemplo, estando aí em São José, ou aqui em Caçapava, tem gente que quer. Então, vamos começar a discutir isso? Vamos formar grupo? É isso que vai ficar.
Mais algumas frases e nos despedimos prometendo outra prosa, uma visita a Caçapava e ao núcleo de animação e toda torcida ao seu futuro romance. Em seguida, depois de voltar a Narradores de Javé por seus relatos, uma cena vem e parece selar essa entrevista. Depois de entenderem que uma Hidreletrica alagará a pequena comunidade e que precisam guardar suas histórias, onde um dos personagens afirma: “Quando o rio encher, tudo vai se apagar, menos a palavra escrita.”
O que Luis Alberto de Abreu conta em suas memórias atesta a frase desse seu próprio filme. Quando o rio enche, ficam as palavras. As escritas, as filmadas, as editadas… Pela sua obra, Abreu já diz: precisamos nos narrar. E colocar nosso eixo no aqui, onde estamos hoje.
¹*Eliana Café: diretora de cinema e documentarista de filmes como Era o Hotel Cambridge e Narradores de Javé.
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Parabéns pela excelente matéria sobre o Luís Alberto Abreu! É inspirador conhecer mais sobre a trajetória de um dramaturgo e roteirista tão importante para o cenário cultural brasileiro. Sua abordagem profunda e inovadora na escrita continua sendo uma referência para quem busca criar histórias que dialogam com a nossa identidade. Obrigado por trazer à tona esse olhar tão enriquecedor sobre sua obra!