Além da mudança de estrutura, outra consequência da migração para o interior é a carência de recursos. Não é surpresa que, à margem da zona de atenção dos programas de incentivo e das produções regulares, esses coletivos têm entre seus desafios: a falta de financiamento constante. O distanciamento em relação ao modelo tradicional de captação de recursos nem sempre é voluntário. Para sobreviver ao apuro, muitos optam por construir redes que permitam uma certa autossuficiência. Como aponta Marcella, “[a] gente percebe que, às vezes, é melhor ter essa contribuição de quem quer apenas apoiar, sem exigir que todos estejam à frente dos projetos”, visão que reforça importância dessa liberdade para o fortalecimento da rede colaborativa.
Mesmo com recursos limitados, esses coletivos demonstram uma criatividade impressionante na busca por sustentabilidade. Muitos contam com o apoio financeiro de seus próprios membros ou com parcerias locais, além de buscar oportunidades em editais e festivais de cinema. Rogério Borges, do Kino-Olho, ressalta que “a autonomia do grupo está no compromisso dos participantes, sejam eles envolvidos em projetos específicos ou contribuindo financeiramente para manter o espaço funcionando.” Para esses coletivos, o financiamento não está somente no acesso aos editais das grandes cidades, mas também na criação de modelos autossustentáveis, nos quais cada membro se torna um pilar para o crescimento do grupo.
Na questão de autonomia, o Núcleo de Animação de Campinas é outro exemplo notável de como o interior vem se consolidando como um polo de produção criativa. O Núcleo vem se destacando ao longo dos últimos anos, oferecendo não só produções próprias, mas também serviços de pós-produção e animação para produções do interior. Maurício Squarisi, cofundador do Núcleo e um dos artistas do grupo, comenta que o coletivo começou como um ateliê improvisado e foi crescendo, atraindo pessoas que queriam experimentar e aprender juntos, adquirindo importância no cenário audiovisual do interior. “Começamos do zero e hoje oferecemos serviços de pós-produção para outros filmes do interior. É um trabalho que só cresceu pelo apoio entre os artistas daqui,” diz ele sobre o desenvolvimento de um espaço autossuficiente, construído com dedicação e trabalho em equipe ao longo dos anos. Leia a seguir alguns destaques da conversa.
Maurício Squarisi, cofundador do Núcleo de Cinema de Animação de Campinas, é uma figura central na animação brasileira, destacando-se pela longa trajetória de 50 anos ao lado de Wilson Lazaretti. Em uma troca com Deivid Mendonça, ele compartilha suas experiências e reflexões sobre a criação de obras autorais, oficinas educativas e o fortalecimento da linguagem própria na animação. Com dedicação ao ensino e à valorização da identidade gráfica individual, Squarisi tem conduzido projetos inovadores, como oficinas em comunidades indígenas e remotas, consolidando a relevância do núcleo na formação cultural e artística do país.
DEIVID MENDONÇA: Acho que o núcleo [Núcleo de Cinema de Animação de Campinas] é uma grande coisa, na sua história e na história do audiovisual do Brasil todo, né, porque vocês se estruturaram há muito tempo numa área que não é tão comum, a animação. Como que surgiu, qual é a história do núcleo todo?
MAURÍCIO SQUARISI: Em 1975, o Wilson Lazaretti, que a gente chama de Wil, foi convidado para dar aulas de cinema no Conservatório Carlos Gomes. É um conservatório bem importante que tem em Campinas, e quando ele foi trabalhar, era cinema para criança, e as crianças queriam desenho animado. Mas era 1975, não tinha material. Então ele conseguiu encontrar alguns livros em inglês, visitou alguns estúdios em São Paulo e começou a trabalhar mais uma coisa totalmente empírica, de fazer fazendo coisas.
DEIVID MENDONÇA: Era stop-motion que ele fazia?
MAURÍCIO SQUARISI: Já era desenho animado, eles filmavam com o Super 8, quadro a quadro. O Wilson ficou um tempinho no Conservatório Carlos Gomes, depois saiu de lá. Aí o projeto ficou um tempo, um tempo bem pequeno, sem ter uma sede, depois conseguiu uma sala no Teatro Municipal Castro Mendes, em Campinas. Essa sala era um camarim que eles transformavam em ateliê. Ali se passou a receber, além das crianças, artistas da cidade que queriam experimentar a animação – poetas, artistas plásticos, ceramistas… Eu era artista gráfico e fui para lá em [19]79.
DEIVID MENDONÇA: Esse foi o seu caminho, antes? O visual? O que você fazia?
MAURÍCIO SQUARISI: Eu sempre gostei de desenhar, desde criança. Eu sou de uma família pobre e precisava me sustentar. Então eu achei que, na publicidade, poderia fazer arte e, ao mesmo tempo, ganhar alguma coisa, aí fui indo para a publicidade. Eu trabalhava em jornal, em editoras, trabalhei em agência de publicidade.
DEIVID MENDONÇA: Aqui em Campinas?
MAURÍCIO SQUARISI: É, em Campinas. Eu nasci em Campinas. Aí, eu estava trabalhando nesse círculo, e estudava publicidade também. Nesse tempo, o Wil estava promovendo algumas mostras de desenho animado no Sesc Campinas. Primeiro, ele fez uma de Norman McLaren, que é a grande referência para todos os animadores não comerciais. É um suíço que criou toda a sua obra no Canadá e foi uma grande referência para toda essa animação artística
DEIVID MENDONÇA: Sem fazer muito desvio, mas aproveitando isso: como era acessar para acessar as referências? Bem mais complicado?
MAURÍCIO SQUARISI: Era em mostras como essa, por exemplo. O Wil conseguiu o acervo do McLaren no Consulado do Canadá, aí fez essa mostra no Sesc Campinas. Depois, ele fez uma mostra de artistas canadenses, animadores canadenses, também vindos do consulado. Aí, fez uma mostra da animação brasileira da época, em [19]79. Então, eram pessoas que faziam publicidade em São Paulo e no Rio, mas tinha um pessoal que fazia uma animação mais artística. Eram animações de filmes curtinhos. Mas quando a gente começou, a gente não quis trilhar esse caminho, sabe? Não sei se a gente não quis, não sei se foi pensado; agora, depois de 50 anos, a gente sabe bem. Mas a gente começou a ir para o lado da educação. A gente já fazia filmes ali no Núcleo, e começou a levar esses filmes para a escola. A escola pagava para exibir, porque naquele tempo, não tinha vídeo, não tinha nada. Então a gente comprou um projetor de 16 milímetros e levava o projetor, os filmes, e exibia. Depois, todos os filmes provocavam algum debate, que interessava para disciplinas da escola. A gente foi encontrando esse outro lado, de conseguir se financiar, e depois a gente começou a desenvolver oficinas e escolas.
DEIVID MENDONÇA: Em que momento é que vocês começam a ir para a educação?
MAURÍCIO SQUARISI: Ah, já no começo, já em 1980.
DEIVID MENDONÇA: Mas é uma ponte, vocês também têm outros focos?
MAURÍCIO SQUARISI: Olha, a gente faz nossos filmes autorais e oficinas. Em maio, a gente esteve na Amazônia, trabalhando com os Yanomamis. Foi um dia que o Lazaretti conseguiu com a Unicamp, porque ele é professor lá também. Aí a gente foi para Maturacá.
DEIVID MENDONÇA: Vocês são muito parceiros, né?
MAURÍCIO SQUARISI: Uma parceria de 50 anos, quase. A gente tem esse trabalho indígena que, na verdade, começou nessa região mesmo, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Em 1991, a gente fez o primeiro filme lá. E a gente voltou agora, em maio, e encontrou várias pessoas que foram nossos alunos em 1991, que tinham 12, 13 anos e hoje tem 40, 45. Algumas vezes eu fiz documentário, mas são poucos.
DEIVID MENDONÇA: Mas sempre ligado à animação? Você acha que isso vem de você gostar muito de desenhar?
MAURÍCIO SQUARISI: Isso. O meu forte mesmo é que eu gosto de desenhar, o desejo de ilustrar, de construir. É a parte mais trabalhosa da animação, é a técnica mais trabalhosa. E é mais conhecida, também.
DEIVID MENDONÇA: Você falou que foi para o Amazonas…
MAURÍCIO SQUARISI: Mas foi animação, também.
DEIVID MENDONÇA: Foi para fazer animação! Além disso, então, você ainda vai para espaços que não são os espaços óbvios de fazer filme. É um cruzamento difícil! É uma linguagem desafiadora e são espaços também desafiadores.
MAURÍCIO SQUARISI: A gente sempre esteve se propondo desafios, sabe? A gente trabalhou no Pantanal nos anos de [19]84, fazendo animação. De [19]84 até [19]89, mais ou menos, a gente fez várias oficinas no Pantanal.
DEIVID MENDONÇA: Geralmente, quando vocês saem, são para espaços mais remotos? É uma dinâmica de formação, de fazer oficinas, ou é de produzir algo de vocês mesmos?
MAURÍCIO SQUARISI: Não, geralmente têm sido de oficinas. Porque cada oficina gera um filme também. Hoje estamos com 403 filmes, e acho que 70% desses 400 filmes foram realizados em oficinas. Os outros são autorais. De filmes autorais, eu fiz 20 curtas e um longa, e agora estou fazendo esse segundo.
DEIVID MENDONÇA: Nesses projetos em que vocês foram para o Pantanal, para o Amazonas, como é a dinâmica? É meio parecido com o que vocês fazem aqui? São oficinas em escolas? Tem já um método ou uma cartilha que vocês seguem?
MAURÍCIO SQUARISI: Não tem muito método, não. A coisa que a gente mais preza é o traço autoral, porque a gente entende que cada um tem a sua própria identidade gráfica. Por isso que eu não quero ir trabalhar em estúdio e desenhar Bob Esponja, desenhar Disney, porque eu tenho o meu próprio traço, e cada um tem o seu. É isso que a gente prega, tanto nas oficinas e quanto nas escolas. E os indígenas, especialmente, eles já têm um traço muito bonito, sabe? É o que eu falo. Eu estava em uma mostra de animação agora, em Vitória (Espírito Santo), e tinha um pessoal que estava junto comigo e era da indústria da animação que estava dizendo para os jovens que eles não tinham que ter estilo nem nada, porque tinham que trabalhar para a indústria. Aí eu fui rebater. Falei que não, que você tem, sim, que preservar cada vez mais seu estilo, porque se o seu estilo está lá nos seus filmes autorais, quando alguém te procurar para fazer algum filme de encomenda, vai pedir no seu estilo. É o que acontece comigo. Quando eu tenho alguma encomenda, não vem pedindo para eu desenhar outra coisa, vem para eu desenhar o que é o meu estilo. A gente preserva muito isso.
DEIVID MENDONÇA: Você está falando de autoralidade… Você acha que isso se perdeu? Isso sempre foi um problema ou é mais grave agora?
MAURÍCIO SQUARISI: Sempre foi um problema, porque a indústria influencia muito. Por exemplo, nessa mostra em Vitória, a maioria dos jovens que estavam lá tinha acabado de se formar lá em Niterói, no Rio de Janeiro, e já estão botando na cabeça deles que, para sobreviver, eles têm que trabalhar na indústria. Aí eles vão. Sempre teve menino que mandava portfólio para a Disney, não sei o quê. Mas a gente acha que você tem que exercitar a sua identidade gráfica
DEIVID MENDONÇA: Você falou que tem uma coisa muito da indústria ir esmagando, mas Disney e as outras são gringas. Aqui, no Brasil, você acha que tem uma lógica de algo que é dito, que é mais comum na linguagem? Que a gente reproduz essa lógica que vem, sei lá, de São Paulo?
MAURÍCIO SQUARISI: É porque as pessoas foram se formando assim. Eu acho que podiam ter se formado pensando em autoral, fazer só autoral. Eu chamo de indústrias, mas são esses estúdios que estão crescendo no Brasil, que fazem séries e coisas assim. Eles ficam bebendo nessas fontes do exterior. O que a gente foi fazer lá em Maturacá, por exemplo. A gente falou para eles “olha, vocês vão criar a sua própria linguagem indígena de fazer filmes”. Porque eu tenho visto filme indígena que é feito por um animador de São Paulo e perde toda a linguagem. Sabe por quê? Porque o indígena tem a sua própria linguagem, tem o seu próprio traço. O ritmo do filme dele vai ser diferente porque ele fala diferente. A língua interfere muito, é impossível falar a língua deles, porque tem sons que minha boca não faz. Tudo isso vai fazer eles criarem uma linguagem diferente, que tem que ser aceita. Eles falaram, falaram – ficaram meia hora lá, discutindo, aí chegaram para nós e falaram “nós queremos fazer isso, queremos fazer o desenho animado de uma dança que é muito importante para nós”. Eles começaram a desenhar aquela dança, e a gente foi orientando como animar. A gente deixou lá umas mesas de luz para animar, uma mesa de filmagem. É um outro modelo. Esse aqui foi meu pai que fez, há quase 50 anos atrás.
DEIVID MENDONÇA: Ele também tinha relação com animação?
MAURÍCIO SQUARISI: Não, ele era marceneiro, mas desenhava muito bem o cinema. Era um excelente marceneiro, tanto que essa mesa tem quase 50 anos.
DEIVID MENDONÇA: Então você entrou num campo que não era tão comum.
MAURÍCIO SQUARISI: Como eu disse, eu era de uma família simples, mas nunca teve uma interferência nessa parte, de falar “não, vai trabalhar numa empresa”? Nunca tive isso.
DEIVID MENDONÇA: Mas isso tem um pouco a ver até com os lugares, não é? Porque tem lugares em que isso parece mais possível. No interior – aqui em Campinas, por exemplo –, isso parece mais distante.
MAURÍCIO SQUARISI: Eu acho que é essa coisa que vão formando na sua cabeça. Por que no interior não pode? O nosso núcleo está aqui há 50 anos e a gente não precisou ir para São Paulo para fazer o que outros estão por aí fazendo. E mesmo você estando de fora, a comunidade de animadores é muito unida, é quase família. Por exemplo, tem um amigo nosso, a gente já foi trabalhar várias vezes com ele, e a sede dele é em Olinda, em Pernambuco. Mas ele montou um estúdio em Igarassu, lá no sertão, e tem vários animadores de Igarassu, fazendo animação lá em Igarassu. Alguns foram para Recife, mas continuam fazendo em Igarassu também. E tem nos outros lugares do Brasil…
DEIVID MENDONÇA: Você falou de como o Brasil não brigou por ter uma linguagem própria. Você acha que tem uma linguagem no interior, que é diferente?
MAURÍCIO SQUARISI: Ainda é cedo para a gente dizer isso, né? Mesmo o cinema, quando a gente fala o que é o cinema do interior, tem muita essa discussão. A gente ainda não consegue definir isso. Acho que é um pouco cedo, porque nem para chamar de movimento dá. É meio precipitado nomear as coisas e rotular, quando a coisa ainda está em desenvolvimento. Quem sabe os historiadores, daqui a cem anos, vão dizer o que era o cinema do interior paulista. Pernambuco é um meio, porque estão produzindo muito ali e quebrando esses tabus todos. O eixo é São Paulo e Rio, e é capital de São Paulo e capital do Rio, e eles quebram isso. E vão fazendo os filmes que eles querem e estão se impondo.
DEIVID MENDONÇA: Você acha que em Pernambuco a gente já entende que o movimento é alguma coisa de identidade, é uma coisa do tipo de filme, de quantidade de filme?
MAURÍCIO SQUARISI: A identidade é forte, e eles não ficaram se rendendo a esse formato, vamos dizer assim, paulista e carioca. Eles são muito bem formados na cultura pernambucana, todos os autores. E teve também o incentivo. Quer dizer, o incentivo não veio do nada, vem porque você batalhou. Que nem no interior. Por que a cota do Proac agora aumentou para 60%? É porque a gente se articula, brigamos e mostramos o resultado. Lá aconteceu isso também, o investimento veio e eles foram conseguindo produzir. Aí a quantidade de filmes pesou.
DEIVID MENDONÇA: Identidade com a quantidade. Tem que ter um volume para ser visível. Você acha que ser considerado movimento, se fosse entendido isso como uma unidade, seria positivo?
MAURÍCIO SQUARISI: Eu ainda não sei responder bem isso. Por um lado, sim. Para pleitear, por exemplo, com o Proac para manter a nossa cota. E talvez até no governo federal. Pleitear para que tenham um olhar para o cinema dos interiores. Acho que essa organização política é importante. Talvez até seja uma coisa muito mais política do que estética, porque a estética não sabemos ainda. Essa organização política que serve para quebrar essa coisa de dizer que não existe cinema no interior. Só que a gente tem que mostrar também, né? Não é só politicamente, mas a gente tem que mostrar nossos filmes, nosso resultado, e isso vem acontecendo. Hoje, quem vem com esse argumento de que não tem cinema no interior, vem com más intenções por trás, porque o recurso é pouco. Não é suficiente. Nesse momento, nós estamos disputando.
O cinema no interior de São Paulo está ganhando uma nova identidade. Longe dos holofotes da capital, movimentos audiovisuais inovadores estão emergindo, impulsionados por práticas colaborativas e horizontais.
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